terça-feira, 1 de maio de 2012

Tinta fresca


Tinha quintal semeado e a garantia de boa colheita. Junto ao pé de araçá, uma toceira de capim limão que era do agrado da dona da casa para fazer chá em dias de vento norte e  alguns galhos de arruda que nunca falhavam. Diz que tinham poderes de manter o ambiente livre de olho gordo.
O terreiro era varrido todos os dias. Não havia folha seca lançada ao léo,  as frutas podres que caíam na terra eram engolidas com a ajuda da enxada. Não havia  desgosto nisso, eram vistas como futuro adubo; eram recolhidas para vingarem outros brotos. Assim também era a  fé daquele povo.  A fé era limpa como os vãos entre as plantas.
Quando se é simples é posssível enxergar a naturalidade das coisas.
Mais para frente do quintal tinha um galinheiro e um poço de água. As crianças eram acostumadas desde que espiavam o mundo pela primeira vez que cada vida podia viver, ter um hino próprio e trazer sua riqueza,  até as galinhas.  Da água que brotava no poço,  e era bebida,  chamavam as comadres e faziam também os batismos da gurizada. As coisas eram vistas como sagradas que eram. Assim de cedo ia-se aprendendo a linguagem do mundo que era mostrada. 
Não era feio usar chapéu de palha, era orgulho. Ter uma caixa de ferramentas e e um kit de carpinar era coisa de gente sábia- observadores e habilidosos. Pai passava para filho como herança, uma espécie de riqueza que carregava mais que macetes, era permeada de afeto; anos e anos de "técnica". As mulheres também podiam usar  a  tal técnica, pois a vida mantida  em círculos ressalatava a igualdade. Se quisessem podiam cozinhar e coser, bem como colocar suas mãos santas na terra. Vi muitas vezes minhas avós Angelina e Honorina plantando, e elas nunca perderam o feitiço da panela, nem o a hipnose das suas vozes doces. Eram mulheres fortes e doces, e sabiam "semear"...
A casa era trocada de tinta todo fim de ano. Isso se dava  para comemorar festivamente uma ano que se passou e um outro que virá trazendo novas esperanças. Olhava as casquinhas raspadas caídas no chão como feridas que secaram. Foram dias de sol, outros tantos de brisa, entretanto tiveram dias de chuva, geada, granizo e vento. Trocar de casca era bom, era como se a vida pudesse se regenerar... e pode! E me traz a sensação de que podemos escolher novas cores, e isso é bom.
Por ali o calor humano aprendido com o sol podia ser sentido entre as pessoas. A família costumava a se reunir para tomar um chimarrão em roda, lá na grama dos fundos onde tinha um banco comprido feito pelo vô, que ficava embaixo do pinheiro. Traziam  também as cadeiras de cerejeira da vó e as dispunham de modo que todos podiam se olhar e conversar. O solzinho de raposear dava um descanso também pro peito familiar e assoprava as brasas de modo que as pessoas reconheciam-se e se afirmavam. Até a embriaguês do tio era comentada com ares de assembléia, reunião essa que não deixava as crianças excluídas. Mas brincar de esconde-esconde naquele quintal imenso era muito melhor. Voavam rendinhas, fitas e calças curtas.
Os eventos familiares sempre foram grandes acontecimentos, as datas não passavam em branco e hoje dá saudade de tanta festa que carregávamos no olhar.
Dessa herança toda herdei o prazer de estar junto, de repartir minha vida com os demais, a simplicidade de usar chapéu de palha do meu avô, de colocar as mãos na terra e de não dividir as pessoas. Pouco isso é entendido. A não ser por quem conhece dessa abundância... por quem sabe a diferença entre dinheiro e riqueza.
Toda vida tem jeitos e acentos, segredos, grandezas e miudezas, coragem e medo,  vergonha e orgulho,... Atravessamos-na e dela cada um carrega o que pode.
O movimento  entre o ser e o existir é unissono, e isso é bonito. Porém, essa exclusividade é carpinada por várias mãos, semeada  por muitos dedos e intenções. Criarão-se cascas velhas e as tintas caírão, mas a promessa é que outro frescor traga suavidade e força para as próximas estações e alivie a aparência. 
As garantias de boa colheita podem ser vistas como garantidas quando se espera alguma coisa e não algo. De tudo há de se tirar o extrato e com ele fazer um bom chá. 
Há de se carregar atrás da orelha ou dentro da roupa um raminho de arruda porque a vida também pede doses de confiança, e tenha bons olhos para o podre, porque por vezes, as frutas podres caídas no chão do terreiro darão belos adubos. 
Que cada um dê seu "ovo" e traga seu canto- mesmo desafinado- e tenha sede de água gelada de poço- aquela que a família toda pode beber e batizar-se...
Que o chapéu de palha não seja vergonha, mas abrigo, e possa deixar a singularidade de cada cabeça. E junto a ele, que cada caixa de ferramentas tenha no seu interior solidariedade, compaixão,  respeito, humanidade, fé e amor para que possa ser mostrada sempre -e- deixada um dia para o filho. Que ele possa ser habilidoso nessas artes.
Que hajam conversas embaixo dos pinheiros e que as crianças não sejam esquecidas, porém  que elas possam brincar, crescer e voar para serem adultos mais felizes.
Que como cada novo dia a gente possa se levantar e que o sol seja sentido  no nosso coração e quando nos dermos as mãos. 
Que haja festa no olhar na comemoração do nosso afeto e que a vida, enfim, possa na sua simplicidade ser repartida e deixada de herança. Que na sua (re) construção diária possamos elaborá-la, recuperando a sua verdade, esperançando  o seu devir de um jeito manso e crente, pintando-a da cor que vier.

 


“Não importa se a estação do ano muda, 
se o século vira, 
se o milênio é outro, 
se a idade aumenta
Conserva a vontade de viver, 
não se chega a parte alguma sem ela.”
Fernando Pessoa



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