terça-feira, 29 de maio de 2012

DA LEVEZA DOS MEUS TRINTA ANOS

Wender Montenegro.
DA LEVEZA DOS MEUS TRINTA ANOS


E essa saudade das coisas sem peso,
sem massa de memória que as estrangule...

As cores do tempo que atracam nos olhos
vermelhos de tanto riacho
o batismo de sal das jangadas
sob o peso vermelho dos pargos
a velha frase engessada na infância:
“coração de beija-flor deixa acerteiro”
o cacimbão, primeira aula de medo
a malícia sensitiva nos enternecendo
as epopéias nas curvas do sonho
o sobrenome perdido entre nomes
no braço fraturado de um amigo
dentro do frio ouvir formigas-de-asas
tirando a chuva das portas
Chico Ferrão, meu santo-avô-barroco,
arrastando a corcunda e o banquinho
para a fala das seis com o Senhor.

O adeus veste o branco de todas as cinzas,
mas quem prescreverá, se habito em febre,
minha dose diária de abstrato?

Hoje pisei num tabaco-do-cão
e um sarro de infância se evolou, tão leve...



sexta-feira, 18 de maio de 2012

Essa Mulher

De manhã cedo essa senhora se conforma
Bota a mesa, tira o pó, lava a roupa, seca os olhos
Ah. como essa santa não se esquece de pedir pelas mulheres
Pelos filhos, pelo pão
Depois sorri, meio sem graça
E abraça aquele homem, aquele mundo
Que a faz assim, feliz
De tardezinha essas menina se namora
Se enfeita se decora, sabe tudo, não faz mal
Ah, como essa coisa é tão bonita
Ser cantora, ser artista
Isso tudo é muito bom
E chora tanto de prazer e de agonia
De algum dia qualquer dia
Entender de ser feliz
De madrugada essa mulher faz tanto estrago
Tira a roupa, faz a cama, vira a mesa, seca o bar
Ah, como essa louca se esquece
Quanto os homens enlouquece
Nessa boca, nesse chão
Depois parece que acha graça
E agradece ao destino aquilo tudo
Que a faz tão infeliz
Essa menina, essa mulher, essa senhora
Em que esbarro toda hora
No espelho casual
É feita de sombra e tanta luz
De tanta lama e tanta cruz
Que acha tudo natural.

quinta-feira, 17 de maio de 2012

João de Deus...

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Você já viu que riqueza é um "velho"? Velho é um livro que fala. Isso, meu avô materno era isso: um livro que falava. Ele era cheio de contos. 
Esse velho sempre foi um menino, mas poderia notavelmente ser  identificado como passarinho, e podia voar perfeitamente com a única asa que possuiá, já que a outra uma granada levou. Que beleza carregava aquele homem e vice-versa. 
Dia feliz era o do passear com ele, íamos a pé, porque os cavalos não estavam na "moda" mais nas cidades, mesmo na minha, interiorana de poucos habitantes, além do mais não havia necessidade  de carro.
Havia um tempinho tinham deixado os cavalos em paz, coisa essa que agradava muito meu avô por ser assim tão livre e enxergar liberdade em todas as criaturas de Deus. Tão simples, tão da terra, tão precioso! Meu avô tinha cheiro de café - plantado pelas suas próprias mãos de homem trabalhador. Trabalh-a-dor. Sim, ele fazia isso com uma sabedoria de grego. 
Hoje eu sei, não reparava quando criança, que meu avô sabia dar flor em troca dos espinhos. Inacreditável existir gente assim, ainda mais pra quem acostumou com a velocidade e o individualismo das cidades grandes. Mas ele existiu e marcou minha vida.
Lembro que antigamente na minha cidade ás vezes faltava luz. Era um terror pra mim e meus primos porque de costume as tias matracas inventavam monstros da escuridão. então, ele juntava nós todos e contava histórias. Não eram histórias de bicho papão, mas de heróis, aqueles que despertavam em nós personagens que poderíamos ser, e a vida ficava tão cheia de vontade de viver. De repente o escuro passava e eu podia perceber que uma luz me iluminava no céu. Ele me trazia luas.
Emily Dickinson disse uma vez que "para fazer uma campina é preciso um trevo e uma abelha. Um trevo, uma abelha e fantasia, mas faltando abelhas, basta a fantasia" Era assim que aqueles olhos chumbados da liga metálica que lhe explodiu nas mãos viam o mundo. Nunca vi o olhar dele ficar cinza, nem a esperança virou fumaça. Nunca exigiu  retalhações do governo, nem fazia do braço que não tinha uma bandeira vitimada. Fazia do seu terror uma história de ninar. 
Hoje sinto falta das suas visitas que corriam para me ver crescer. Hoje sinto falta da lua que ele acendia quando o meu céu escurecia.
Foi embora como o pássaro que era, suave, sem estardalhaços, cantando, deixando paz, digno de toda doçura que deixou de semente para os netos.
E sai das falas risonhas para ser transformado em livro, em história de ninar para outros ouvidos pequenos, e pode ser sentido o seu abraço de um braço só, de um amor que pode suportar bombas e florescer rosas.


Sabes, pai

Ruth Ministro

Sabes, pai, há dias em que me lembro do mundo que me pintaste quando ainda não sabia de que cores se pintava o mundo. Quando eu era maior do que o meu pequeno tamanho, porque tu me dizias que o mundo era meu. E tenho saudades das tardes de sol que passámos juntos, a brincar nesse mundo onde nada nem ninguém podia enegrecer o céu. Sabes, pai, há dias em que quase me esqueço do caminho para esse mundo que tu me pintaste e que guardei até hoje na gaveta das memórias. Dias em que a vida me magoa a pele, me fere a esperança e me pesa os passos. Mas depois há o verde dos teus olhos a lembrar-me que um dia, há muito, muito tempo, eu já acreditei. Sabes, pai, o mundo que tu me pintaste continua a ser cenário dos meus sonhos. E a tua mão continua a amparar-me a cada vez que acordo e vejo que, afinal, o mundo é um labirinto cheio de sombras onde os poemas se perdem. E os dias se gastam. Tu sabes, pai.

quarta-feira, 16 de maio de 2012

Mãe! Em todos os dias do ano.

Hilda Lucas

"Mãe é aquele ser estranho, louco, capaz de heroísmos, dramas e breguices com a mesma fúria; paga mico, escreve carta para Papai Noel, se faz passar por fadinha do dente, coelho da páscoa, cuca, pede autógrafo para artistas deploráveis assiste a programas, peças, shows horríveis, revê milhares de vezes os mesmos desenhos animados, conta as mesmas histórias centenas de vezes, vai pra Disney e ... A- D - O - R - A!
Mãe faz escândalo, tira satisfação com professor, berra em público, dá vexame, deixa a gente sem graça, compra briga; é espaçosa, barulhenta, tendenciosa, leoa, tiete, dona da gente. Mãe desperta extremos,ganas, irrita, enlouquece, mas... É mãe. 
 Mãe faz promessa, prestação, hora extra, pra que a gente tenha o que é preciso e o que sonha. Mãe surta, passa dos limites, às vezes até bate, diz coisas duras; mãe pede desculpas, mortificada... Mãe é um bicho doido, louco pela cria. Mãe é Visceral!
 Mãe chora em apresentação de balé, em competição de natação, quando a filha menstrua pela primeira vez, quando dá o primeiro beijo, quando vê a filha apaixonada no casamento, no parto... Xinga todo e cada desgraçado que faz a filha sofrer, enlouquece esperando ela chegar da balada. Mãe é uma espécie esquisita que se alterna entre fada e  bruxa com um naturalidade espantosa. É competente no item culpa e insuperável no item ternura, mas pode ser virulenta, tem um lado B às vezes  C, D, E... Mãe é melosa, excessiva, obsessiva, repulsiva, comovente, histérica, mas não se é feliz sem uma. Mãe é contrato: irrevogável, vitalício instransferível!
 Mãe lê pensamento, tem premonição, sonhos estranhos. Conhece cara de   choro, de gripe, de medo; entra sem bater, liga de madrugada, pede favor chato, palpita e implica com amigos, namorados, escolhas. Mãe dá a roupa do corpo, tempo, dinheiro, conselho, cuidado, proteção. Mãe dá um jeito, dá nó,dá bronca, dá força. Mãe cura cólica, porre, tristeza, pânico noturno, medos. Espanta monstros, pesadelos, bactérias mosquitos, perigos. Mãe tem   intuição e é messiânica: Mãe salva. Mãe guarda tesouros, conta histórias e tece lembranças. Mãe é arquivo!
Mãe exagera, exaure, extrapola. Mãe transborda, inunda, transcende.   Ama, desmama desarma, denota, manda, desmanda, desanda, demanda. Rumina o passado, remói dores, dá o troco, adora uma cobrança e um perdão lacrimoso.
Mãe abriga, afaga, alisa, lambe, conhece as batidas do nosso coração, o toque dos nossos dedos, as cores do nosso olhar e ouve música quando a gente ri. Mãe tem coração de mãe! 
Mãe é pedra no caminho, é rumo; é pedra no sapato, é rocha; é drama mexicano, tragédia grega e comédia italiana; é o maior dos clássicos;é colo, cadeira de balanço e divã de terapeuta... Mãe é madona-mia! É deus-me-acuda; é graças-a-deus; é mãezinha-do-céu, é mãe é minha-  é a que padece no paraíso enquanto nos inferniza...   Mãe é absurda e inexoravelmente para sempre e é uma só: não há Mistério maior! Só cabe uma mãe na vida de um filho... e olhe lá! Às vezes, nem cabe inteira. Mãe é imensurável!
Mãe é eterna, não morre jamais. Bicho estranho, entranha, milagre, façanha, matriz, alma, carne viva, laço de sangue, flor da pele.  Mãe é mãe, e faz cada coisa..."

segunda-feira, 14 de maio de 2012

Precisa-se de Loucos





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Do Blog; pensamentos




Precisa-se de loucos De loucos uns pelos outros! Que em seus surtos de loucura tenham habilidades suficientes para agir como treinadores de um mundo melhor. Que olhem a ética, o respeito às pessoas e a responsabilidade social não apenas como princípios organizacionais, mas como verdadeiros compromissos com o Universo. Precisa-se de loucos de paixão. Não só pelo trabalho, mas principalmente por gente, que vejam em cada ser humano o reflexo de si mesmo, trabalhando para que velhas competências dêem lugar ao brilho no olhar e a comportamentos humanizados. 
 Precisa-se de loucos pelo desconhecido que caminhem na contramão da história
 Precisa-se de loucos poliglotas que não falem inglês, espanhol, francês ou italiano, mas que falem a língua universal do amor, do amor que transforma, modifica e melhora. Palavras não transformam empresas e sim atitudes. Precisa-se simplesmente de loucos de amor. De amor que transcende toda a hierarquia, que quebra paradigmas; Amor que cada ser humano deve despertar e desenvolver dentro de si e pôr a serviço da vida própria e alheia.
As organizações precisam urgentemente de loucos, capazes de implantar novos modelos de gestão, essencialmente focados no SER, sem receios de serem chamados de insanos, que saibam que a felicidade consiste em realizar as grandes verdades e não somente em ouvi-las… Ou resgatamos a inocência perdida ou teremos que desistir de vez da condição de HUMANOS. Qual vai ser a sua atitude?

terça-feira, 1 de maio de 2012

Tinta fresca


Tinha quintal semeado e a garantia de boa colheita. Junto ao pé de araçá, uma toceira de capim limão que era do agrado da dona da casa para fazer chá em dias de vento norte e  alguns galhos de arruda que nunca falhavam. Diz que tinham poderes de manter o ambiente livre de olho gordo.
O terreiro era varrido todos os dias. Não havia folha seca lançada ao léo,  as frutas podres que caíam na terra eram engolidas com a ajuda da enxada. Não havia  desgosto nisso, eram vistas como futuro adubo; eram recolhidas para vingarem outros brotos. Assim também era a  fé daquele povo.  A fé era limpa como os vãos entre as plantas.
Quando se é simples é posssível enxergar a naturalidade das coisas.
Mais para frente do quintal tinha um galinheiro e um poço de água. As crianças eram acostumadas desde que espiavam o mundo pela primeira vez que cada vida podia viver, ter um hino próprio e trazer sua riqueza,  até as galinhas.  Da água que brotava no poço,  e era bebida,  chamavam as comadres e faziam também os batismos da gurizada. As coisas eram vistas como sagradas que eram. Assim de cedo ia-se aprendendo a linguagem do mundo que era mostrada. 
Não era feio usar chapéu de palha, era orgulho. Ter uma caixa de ferramentas e e um kit de carpinar era coisa de gente sábia- observadores e habilidosos. Pai passava para filho como herança, uma espécie de riqueza que carregava mais que macetes, era permeada de afeto; anos e anos de "técnica". As mulheres também podiam usar  a  tal técnica, pois a vida mantida  em círculos ressalatava a igualdade. Se quisessem podiam cozinhar e coser, bem como colocar suas mãos santas na terra. Vi muitas vezes minhas avós Angelina e Honorina plantando, e elas nunca perderam o feitiço da panela, nem o a hipnose das suas vozes doces. Eram mulheres fortes e doces, e sabiam "semear"...
A casa era trocada de tinta todo fim de ano. Isso se dava  para comemorar festivamente uma ano que se passou e um outro que virá trazendo novas esperanças. Olhava as casquinhas raspadas caídas no chão como feridas que secaram. Foram dias de sol, outros tantos de brisa, entretanto tiveram dias de chuva, geada, granizo e vento. Trocar de casca era bom, era como se a vida pudesse se regenerar... e pode! E me traz a sensação de que podemos escolher novas cores, e isso é bom.
Por ali o calor humano aprendido com o sol podia ser sentido entre as pessoas. A família costumava a se reunir para tomar um chimarrão em roda, lá na grama dos fundos onde tinha um banco comprido feito pelo vô, que ficava embaixo do pinheiro. Traziam  também as cadeiras de cerejeira da vó e as dispunham de modo que todos podiam se olhar e conversar. O solzinho de raposear dava um descanso também pro peito familiar e assoprava as brasas de modo que as pessoas reconheciam-se e se afirmavam. Até a embriaguês do tio era comentada com ares de assembléia, reunião essa que não deixava as crianças excluídas. Mas brincar de esconde-esconde naquele quintal imenso era muito melhor. Voavam rendinhas, fitas e calças curtas.
Os eventos familiares sempre foram grandes acontecimentos, as datas não passavam em branco e hoje dá saudade de tanta festa que carregávamos no olhar.
Dessa herança toda herdei o prazer de estar junto, de repartir minha vida com os demais, a simplicidade de usar chapéu de palha do meu avô, de colocar as mãos na terra e de não dividir as pessoas. Pouco isso é entendido. A não ser por quem conhece dessa abundância... por quem sabe a diferença entre dinheiro e riqueza.
Toda vida tem jeitos e acentos, segredos, grandezas e miudezas, coragem e medo,  vergonha e orgulho,... Atravessamos-na e dela cada um carrega o que pode.
O movimento  entre o ser e o existir é unissono, e isso é bonito. Porém, essa exclusividade é carpinada por várias mãos, semeada  por muitos dedos e intenções. Criarão-se cascas velhas e as tintas caírão, mas a promessa é que outro frescor traga suavidade e força para as próximas estações e alivie a aparência. 
As garantias de boa colheita podem ser vistas como garantidas quando se espera alguma coisa e não algo. De tudo há de se tirar o extrato e com ele fazer um bom chá. 
Há de se carregar atrás da orelha ou dentro da roupa um raminho de arruda porque a vida também pede doses de confiança, e tenha bons olhos para o podre, porque por vezes, as frutas podres caídas no chão do terreiro darão belos adubos. 
Que cada um dê seu "ovo" e traga seu canto- mesmo desafinado- e tenha sede de água gelada de poço- aquela que a família toda pode beber e batizar-se...
Que o chapéu de palha não seja vergonha, mas abrigo, e possa deixar a singularidade de cada cabeça. E junto a ele, que cada caixa de ferramentas tenha no seu interior solidariedade, compaixão,  respeito, humanidade, fé e amor para que possa ser mostrada sempre -e- deixada um dia para o filho. Que ele possa ser habilidoso nessas artes.
Que hajam conversas embaixo dos pinheiros e que as crianças não sejam esquecidas, porém  que elas possam brincar, crescer e voar para serem adultos mais felizes.
Que como cada novo dia a gente possa se levantar e que o sol seja sentido  no nosso coração e quando nos dermos as mãos. 
Que haja festa no olhar na comemoração do nosso afeto e que a vida, enfim, possa na sua simplicidade ser repartida e deixada de herança. Que na sua (re) construção diária possamos elaborá-la, recuperando a sua verdade, esperançando  o seu devir de um jeito manso e crente, pintando-a da cor que vier.

 


“Não importa se a estação do ano muda, 
se o século vira, 
se o milênio é outro, 
se a idade aumenta
Conserva a vontade de viver, 
não se chega a parte alguma sem ela.”
Fernando Pessoa



Desencantar-se...



LUH

Sentimento de estranheza,  estranho é o desencantar-se...
Desencantar-se é perder a energia que você depositava em algo ou alguém, é não ter vontade nenhuma para com, nenhuma curiosidade movida, é criar distâncias. Desencantar-se é não querer mais ter cuidado, é não se importar, é dar um corte na corda que segurava o laço.
É perder a fé. É sentir nada.

Desencantar-se é ver as quimeras perdidas, ilusões estas que nós mesmos depositamos e que na real só poderiam dar certo se fossem uma via de mão dupla...e não eram.
É mudar o foco, deixar pra trás o que perdeu o viço. É dar á outras formas o encantamento.
O movimento é esse e quando nos damos conta disso, é estranho...

Nos desencantamos com as pessoas, com as coisas. Empoderamos o objeto das expectativas, puros artifícios, que nós conseguimos dar conta concluir sozinhos; colocamos as nossas capacidades á mercê e queremos achar culpados: era o autor daquele livro que perdeu a inspiração, era o curso de línguas que era ruim, era a pessoa que não prestava...e tantos outros era.
Somos inventores! Somos cheios de truques. Vivemos de realidade ilusória. Esquecemos que expectativa é probabilidade.

Na verdade nossas expectativas eram nossas, só nossas e o que tem o algo ou alguém haver com isso? Nada...Cada um é responsável por si e pelo que deseja.
O que nos salva ? Os outros encantamentos; restos de ilusão. Pequenas e grandes mortes simbólicas virão, assim como pequenos e grandes encantamentos...Morrendo para dar lugar a algo novo...

O desencanto afinal é encontrar-se - ainda que não se saiba.
Desencantar-se é estar livre...
Reféns de (quase) nada somos.
Debandos permanentes.
E a vida corre.
Contrastes!

Não me deixes




Gonçalves Dias

Debruçada nas águas de um regato
A flor dizia em vão
A corrente, onde bela se mirava:
" Ai, não me deixes, não!"


Comigo fica ou leva-me contigo
Dos mares à amplidão 
Límpido ou turvo te amarei constante,
Mas não me deixes, não!


E a corrente passava, novas águas
Após outras vão,
E a flor sempre a dizer curva na fonte:
" Ai, não me deixes não!


E das águas que fogem inçessantes
A eterna sucessão
Dizia sempre a flor e sempre embalde:
" Ai, não me deixes não!


Por fim desfalecida e machucada
Quase a lamber o chão,
Buscava ainda a corrente por dizer-lhe
Que a não deixasse, não!


A corrente impiedosa a flor enleia
Leva-a do seu torrão.
Afundar-se dizia a pobrezinha:
" Não me deixaste, não!
                           Gonçalves Dias