quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

O BEIJO DA CHUVA

Postado por Milene Lima



Lá fora a chuva ensaia passos de dança pelos tetos dormentes. Há muito tempo não se ouvia do céu a canção das águas sobre o chão seco e noturno. Quem cedo adormece o corpo doído, não escuta a sua música. Não vê a sua dança insinuante lavando paredes imundas de tanta estranheza, banhando de renascimento a matiz desbotada de árvores e olhos. Seu véu de água é poesia generosa quando se derrama do começo do céu, a beijar por inteiro o chão árido e triste. E na batida macia das suas águas, janelas e portas despertam e sabem da precisão de aceitar os novos passos de vida na dança bonita da chuva. Sua canção de alegria desperta a fé que teimava cochilo e agora, até onde não alcança o olhar cansado, há uma inundação de esperança e motivo bom pra se esperar o amanhecer. 

O OUTRO NOME

Postado por Milene Lima


“O que tu tá fazendo aí nesse nome?”, perguntou-lhe o amigo surpreendido com o seu chamado na janela.  “Eu agora só tenho esse nome”, respondeu, num quê de mentira mal contada, a qual ela própria desacreditava.
Gostava de fugir. Se não lhe eram possíveis as fugas mais audaciosas, praticava as que lhe dessem algum retorno imediato... Um refresco na quentura insuportável que haviam se tornado aqueles dias. Pediu a chuva. Fez arremedos de versos para ela, mas isso foi de pouca valia. Não que não houvesse aparecido a chuva. Os dissabores é que estavam encardidos demais para serem clareados na ligeireza de água que o céu derramou. Seguiam ali, os dissabores encardidos, feito sombra aonde quer que seus passos caminhem.
“Tudo culpa desse mês de abril”, resmungava para os seus próprios botões cansados de tanta queixa. O mês em questão, segundo a sua percepção desatinada, parecia ter trazido os seus trinta dias desprovidos de boa vontade. Passavam rabugentos e ela, numa súplica silenciosa, pedia que se aviassem.
Tola. Um nome é apenas um nome. Fosse abril ou janeiro, tivesse ela um ou dez nomes, os desassossegos não trocariam de roupa apenas por sua vontade. De nada adiantaria cortar caminho por atalhos supostamente facilitadores; era preciso viver, um a um, todos os dias que passavam sem o menor senso de humor e até lhes oferecer um riso amarelo, deixando cair a faca entre os dentes.
Estava agora naquele nome, na outra janela, mas era a mesma indisfarçável alma. Era o velho coração, o que adorava se aventurar em caminhos pouco seguros e, exausto, se percebia a esmo sem saber direito como voltar pra casa. Eram os pensamentos de outrora insistindo passos perigosos entre o racional e o absurdamente emocional daquela linha sutil. Eram os fiapos de sensibilidade, danosos ou benignos, a se misturarem num emaranhado de lucidez insana, lhe mantendo viva.
Ao amanhecer, fitará o espelho em busca de respostas que certamente não virão. Chuvas adoradoras de poesia, dissabores encardidos e teimosos, rotas de fugas inúteis... Um nome é só um nome. O fitar-se no espelho de dentro é o que define como serão os passos nos fragmentos de tempo de cada amanhecer.
Ela sabe. Ela sabe?

terça-feira, 29 de outubro de 2013

Tenho Fome de Inverno

Pulanito


 Gosto dos dias quando começam a empequenecer.
Daqueles que quando chego a casa e já só uma réstia de claridade sobra no horizonte a dizer-me que para lá do que vejo só existe o que posso imaginar.

Esta noite trovejou. Acordei com o ribombar dos trovões e com as primeiras notas de uma música sincopada a derramar a melodia da água bendita que anuncia o final do verão. Eram quatro da manhã. Uma hora insuspeita para quem irrompe pelo silêncio da madrugada, fazendo-se anunciar como se de irados deuses se tratassem, sem pedir favores nem licença. Fiquei acordado experimentando o medo que sempre sinto quando a revolta da natureza nos resolve presentear com avisos deste calibre.

Penso nos dias frios que estão para chegar, no aconchego do lar e no crepitar da lenha que me há de fazer companhia nos tempos que aí virão.

Penso na sincopada dança das labaredas que de tanto as fixar me hipnotizam e transportam para mundos que nem ouso aqui relatar. E sinto, que mais um ciclo se encerra para outro de novo se nos escancarar, e assim, cumprirmos o ritual da vida que não é mais do que andarmos de estação em estação no Expresso da Existência, até que um dia nos apeemos na estação terminal desta viagem.

Tenho fome de inverno e do cheiro a lenha queimada que perfuma o entardecer quando aos fins-de-semana aporto à minha aldeia.
Tenho fome de inverno, com ribeiras a transbordar, mais o perigo de as atravessar.
Tenho fome de inverno, com ventanias a zunir por buracos e frestas tentando entrar sem que para tal haverem sido convidadas.
Tenho fome de inverno, altura em que a poesia da vida e aquela que se traduz em letra de forma me visita mais amiúde, e isso, é privilégio que todos os dias agradeço, mesmo naqueles em que esta parece definitivamente de mim afastada.
Tenho fome de inverno, com comida de panela e camisolas de gola alta.
Tenho fome de inverno, com bolotas assadas no fogo debaixo da trempe.
Tenho fome de inverno, com natais de mesa farta e lengalengas de contar a petizes ao colo sentadas com a perna a fazer de cavalinho. Lá vai o Manel ceguinho, em cima dum burrinho, o burrinho é fraco, em cima dum macaco……
Tenho fome de inverno para te amar ao anoitecer e em todas as noites de insónia em que desenho com a ponta dos dedos vezes sem conta a silhueta da tua nudez.
Tenho fome de inverno para me poder sentar ao postigo e ver a vida que passa em tons de cinza prata. Tenho fome de inverno, para mergulhar no meu próximo livro que já me baila na cabeça há tanto tempo, mas que, confesso, tenho medo de nele me afogar.
Tenho fome de inverno, para poder voltar a abraçar-te sejas lá tu quem fores.
 Tenho fome de inverno, porque… tenho fome de ti!

segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Quero que decidas


 

Não chegarás a lugar nenhum
Parada à frente de minha porta

Sei que o mundo te convida
Com uma estrada livre e infinita

Mas um vento frio começa a soprar
Neste final de dia

As nuvens estão densas
E já sinto o cheiro da terra molhada

Não há mais tempo
Preciso confinar os bichos

Vedar as frestas
E cerrar os trincos

Aqui dentro o fogo está aceso
A sopa quente

E há uma cama limpa e vazia
Sugiro que entres

domingo, 20 de outubro de 2013

quando




Quando a criança era criança

Quando a criança era criança,
caminhava balançando os braços,
queria que o riacho fosse um rio,
o rio uma torrente
e que essa poça fosse o mar.
Quando a criança era criança,
não sabia que era criança,
tudo lhe parecia ter alma,
e todas as almas eram uma.
Quando a criança era criança,
não tinha opinião a respeito de nada,
 não tinha nenhum costume,
sentava-se sempre de pernas cruzadas,
saía correndo,
tinha um redemoinho no cabelo
e não fazia caretas pras fotografias.
Quando a criança era criança
era a época destas perguntas:
Por que eu sou eu e não você?
Por que estou aqui, e por que não lá?
Quando foi que o tempo começou, e onde é que o espaço termina?
Um lugar na vida sob o sol não é apenas um sonho?
Aquilo que eu vejo e ouço e cheiro
não é só a aparência de um mundo diante de um mundo?
Existe de fato o Mal e as pessoas realmente más?
Como pode ser que eu, que sou eu,
antes de ser eu mesmo não era eu,
e que algum dia, eu, que sou eu, não serei mais quem eu sou?
Quando a criança era criança,
mastigava espinafre, ervilhas, bolinhos de arroz, e couve-flor cozida,
e comia tudo isto não somente porque precisava comer.
Quando a criança era criança,
uma vez acordou numa cama estranha,
e agora faz isso de novo e de novo.
Muitas pessoas, então, pareciam lindas
e agora só algumas parecem, com alguma sorte.
Visualizava uma clara imagem do Paraíso,
e agora no máximo consegue imaginá-lo,
não podia conceber o vazio absoluto,
que hoje estremece no seu pensamento.
Quando a criança era criança,
brincava com entusiasmo,
e agora tem tanta excitação como tinha,
mas só quando pensa em trabalho.
Quando a criança era criança,
era suficiente comer uma maçã, uma laranja, pão,
E agora é a mesma coisa.
Quando criança era criança,
amoras enchiam sua mão como somente as amoras conseguem,
e também fazem agora, nozes frescas machucavam sua língua,
parecido com o que fazem agora,
tinha, em cada cume de montanha, a busca por uma montanha ainda mais alta,
e em cada cidade, a busca por uma cidade ainda maior,
e ainda é assim,
alcançava cerejas nos galhos mais altos das árvores como, com algum orgulho,
ainda consegue fazer hoje,
tinha uma timidez diante de estranhos,
como ainda tem.
Esperava a primeira neve,
como ainda espera até agora.
Quando a criança era criança,
arremessou um bastão como se fosse uma lança contra uma árvore,
e ela ainda está lá, balançando, até hoje.

Peter Handke
(não sei de quem é a tradução) 

receitas vegetarianas - que me faça andar

12 de setembro de 2013


receitas vegetarianas - que me faça andar



O medo, mãe, me paralisa. 
mãe, me dá uma comida que me faça andar?

Meu filho, se há um penhasco às suas costas e um mar desconhecido à sua frente:
espera, respira. não há mágica. que a vida siga seu curso.

Esse fluir, mãe, preciso disso, que deixe fluir: que comida, mãe, transforma o mundo?

Que mundo, meu filho, que mundo? o tanto de mundo que nos cabe é a vida vivida no fluxo, é essa respiração.

Mas eu tenho medo, mãe, não consigo me acalmar. meus ouvidos doem
.
Ouça, ouça este nada, meu filho, o som do mar cada vez mais distante. ouça. o que pode se alimentar de distâncias e contemplações. coma silêncios, meu filho, comidas longas, que esperam no escuro, que esperam no fundo da terra, suspensas no tempo. coma, meu filho, o que sabe esperar sem medo
.
Uma comida assim, mãe, me dá?

Uma polenta, meu filho. porque o milho, veja, os longos colmos a se abrir folhas, uma grama gigante. corredores esvoaçantes é o milharal. o pendão cresce sincronizado com os estigmas e as chuvas: cada pequena futura semente se liga em medo e fio à espera de um pólen, cabelos verdes avermelham e se alongam, estiram-se: pensa se cada uma não espera ávida? em terra seca, nada de grãos. e de nada adiantaria esse um fio, esta esperança. depois, pensa o grão seco: pilão, grão moído, fino, fubá. o medo que morava no grão. a suavidade que é ser fubá. pensa, meu filho, pensa. a água fervente e salgada. mistura o fubá macio com água – fria - e despeja esse creme, devagar para que ferva e permaneça fervente por uma hora, devagar, lento, como um abraço que também afasta o medo. não se esqueça: no fim de tudo, manteiga, que derreta.

A doçura amaina o medo, mãe? faz um bolo de fubá pra mim. doce e cremoso, faz?

Meu filho, que doçura? se até os loucos têm medo. o medo preserva a vida como uma faca que se saiba usar. o medo é que dá coragem. sangue farto, gesto rápido e forte, resistência à dor. procure, aí dentro, esse bicho que grita, que relincha, revira, que bate os cascos.

Esse bicho sou eu, mãe, fragilidade e ossos, ele não sabe seguir.

Sabe, meu filho, esse bicho sabe seguir, e também morde, e mata, e nos faz perigosos. monte-o, meu filho, desmonte-se. entre na floresta escura do seu medo. deixe as armas sobre a mesa.

Faca, mãe, a faca eu sei usar.

Com delicadeza, meu filho, não esse cavalo enlouquecido, esse fogo nos olhos. a fúria que ele contém
.
A faca, mãe. uma comida que me faça andar.

Ali, no chão, procure. os cogumelos não são aquilo que você vê. mas, agora,  procure o que se pode ver, essa quase floração de umidade e calor. uma floração inexata, busque, entre húmus e folhas secas. cuide dos seus passos, dos gestos impensados, não arranque o fino fio que desde baixo os sustém: estrutura que dorme invisível no fundo da terra, no fundo da matéria que orgânica vive sem a gente se dar conta, meu filho, e, mais que tudo, não se confunda, não traga veneno em vez de comida. ali será quase escuro, os olhos se acostumam, todos os sentidos, as mãos. enquanto esporos voam, se esparramam, e novos fios invisíveis sob a terra criarão novas teias, pequenas fissuras. as cores, a forma, meu filho, esteja atento. não arranque, corte, corte delicadamente. esta sua faca. e volte.

Mãe, eu trouxe, veja. meu medo capturado desde o antigo, e trouxe os cogumelos, lindos
.
Alguns são venenosos, meu filho
.
Foi a pressa, mãe, a fome do que me tire o medo.

Não tenha pressa, meu filho, espere abrir-se cada momento. não se avança cegamente.

Era o escuro, mãe.

Era o medo, filho. ponha a panela de ferro no fogo, que esquente dentro, os cogumelos lavados e sem galhos sem musgos sem restos da terra de onde vieram. e só estes, que não nos fazem mal. depois sal. veja, soltam água, perdem toda a água que trouxeram da umidade das florestas. persevere, meu filho. depois azeite, alho, salsinha. se quiser cebola, se quiser uma pimenta, se quiser, com a polenta, um creme de leite, leve, fresco. quente. porque os mamíferos são esta paciência. não obstrua caminhos, meu filho, não deixe o medo, e ao mesmo tempo, filho, deixe.
...
Mãe...

Diga, meu filho...

das coisas mais doces que um homem pode ouvir



27 de setembro de 2013

das coisas mais doces que um homem pode ouvir 

desdobrou o mapa. abriu. abriu novamente e mais uma vez até cobrir a mesa toda. no intrincado de caminhos que pareciam artérias e ondulações que sugeriam planaltos e planícies, ele disse: você está aqui. e apontou com o dedo: o onde eu estava era um ponto. se o lugar era quase invisível, eu era um nada. um suspiro na vastidão.
perguntei das estradas, as condições. ele explicou com calma, naquela luz oscilante, que não era claro se seria possível passar nas partes mais próximas ao rio, ali onde ele se expande. chovia. chovia sem parar. o frio. o argiloso. ardiloso. ácido.
meu olhar caiu desconsolado sobre o mapa, ele me propôs que eu passasse a noite ali, dormisse, no dia seguinte, seria sempre outro dia. aquilo era, por fim, uma coisa doce naquelas últimas horas. eu precisava. e aceitei.
ele me mostrou um quarto, que era uma espécie de depósito, com uma velha mesa de pebolim abandonada, um violão sem cordas, uma poltrona, caixas de conteúdos inexatos. entre a porta e o amontoado, uma cama, que me esperava desde sempre. depois ainda disse: tome uma ducha, se quiser. o banheiro é no final do corredor, já arrumo uma toalha.
saí do banho, a roupa era a mesma mas tudo agora aquecido. e bom. ouvi me chamar e o som vinha da sala onde antes o mapa sobre a mesa. agora, uma sopa grossa de abóbora. três pratos. colheres. faca. pão, manteiga numa vasilha com água. copos. vinho tinto. me apresentou a mulher. que me sorriu. e perguntou. e perguntou. e perguntou enquanto eu respondia, respondia, respondia. depois eles também contaram. e eu perguntei. e logo perguntas, histórias e respostas se confundiam no calor da sopa e do pão. lá fora chovia.
ele tirou os pratos, a panela, as colheres, a faca. ela e eu continuamos desfiando conversas que somos mais capazes com desconhecidos, numa noite fria e chuvosa, num lugar quase inexistente do mapa. ele voltou da cozinha trazendo quindins: amarelos-gema em pequenos pires brancos: como se ovos fritos em doçura. a doçura.
comi o primeiro. enquanto comia em êxtase perguntei – apenas para distraí-la – como se faz quindins assim? e ela me falou, quase num sussurro, de ovos, de separar as gemas, de açúcar fino pó, me falou de coco ralado e úmido. manteiga. eu ouvia, a chuva, a sala em luz obscura, eu via, um ponto no mapa que cresce. eu crescia também.
aos poucos, a doçura fazia fundir aquele cheiro de terra molhada ao vapor antigo da bosta das vacas que a gente pisava no curral, a memória vaga de um cuidado, de uma alegria, de uma solidão, da sombra oscilante de uma lamparina no copo com água no canto do quarto, a madrugada despontando em mugidos. lembrança de pecados e medos espalhados ao pé da cama.
nas mãos de pele fina riscada, as veias como um intrincado de estradas, sobreposição de mapas. o movimento que fazia para dizer em gestos o ralar bem fino o coco, o misturar ao açúcar, à manteiga. um creme. o peneirar as gemas a desviar com delicadeza a película que as envolve. o mexer e remexer, até a consistência de uma gemada.  e quando já comia o terceiro quindim, tudo em mim se perdoara, toda a dor. e ela a insistir nas forminhas: preencha, preencha cada uma, até a boca, sem medo: a chuva sempre preenche os rios. e só às vezes eles vazam.

ESQUECI DE ADORMECER

Esqueci de adormecer.

Ana Rgot

Fiquei inventando histórias para mim. fazendo de conta que a mais bonita de todas ainda não me aconteceu.-
Eu sou aquela de quem tens saudade,
a princesa do conto ´era uma vez...´ - nos olhos trago ondas de energia, na pele um vasto campo de algodão ao som das rajadas de vento e flor . plantei luas nos alpendres da tarde e estrelas cadentes que quebrassem vidraças na revolta dos sentidos . levei tudo que meus olhos pudessem colher e minhas mãos sonhassem e cantei todas as canções que meu silêncio desejasse na linguagem antiga, aquela que trazemos no corpo e existe para além de nós....

quinta-feira, 26 de setembro de 2013

ETERNO


Duy Huynh

.

Corrias pelo campo por entre searas inocentes, carregando nos bolsos as histórias tricotadas por asas de sonho. Só repousavas nos braços da pequena montanha, que avistavas da janela do teu quarto. Acreditavas que o céu lhe beijava o rosto sempre que o sol e a lua poisavam a mão no seu regaço. Convicta dessa ilusão, escancaravas os olhos e imaginavas poder abraçar o céu e semeá-lo num pedaço do teu jardim onde as flores teriam o simples brilho das estrelas. Sonhavas poder beber esse azul e navegar pelo céu povoado de ilhas brancas e árvores com asas. O infinito não cabia nos teus olhos, mas ias guardando e cultivando pequenos fragmentos dessa morada... Agora que os teus bolsos se tornaram demasiado pequenos, e as searas ganharam outra cor, já não precisas de correr. Pois as histórias tricotadas por asas de sonho foram crescendo e (sobre)vivem na única morada onde cabe todo esse infinito, o teu eterno coração de mãe...

.

terça-feira, 17 de setembro de 2013

DA LÚCIDA EMBRIAGUEZ

(AD)

Garçom, traga-me uma dose exagerada de conhaque e valentia, por favor. Por que ainda tenho um bom pedaço pra caminhar, antes que me a noite me tome nos braços e lance na cama desalinhada o meu corpo exausto do que me mostrou o dia. E pra viagem, garçom, embrulhe uma porção de poesia e outro bocado de sonhos. Pretendo abarrotar quaisquer espaços vazios com esses dois ingredientes de indescritível necessidade. Pode um sujeito viver sem sonhar? Pode não, rapaz! Quando tudo na vida é desencanto e amargura, o sonho invade o silêncio do lado de dentro e garante que na vida haverá de se experimentar outro gosto que não seja o azedume desgraçado misturado nos goles de vida do sujeito. E também é de muita precisão a poesia, você não acha? Poetas não permitem que a vida aconteça em vão, sem que sua alma se alvoroce e a tudo retrate. Pois, se há por perto uma poesia, mastigue-a até o último verso. Até a amargura do sujeito ganha ares de boniteza, quando lhe diz a poesia. Ah, e de amor, garçom, me separe logo uma meia dúzia de garrafas, que é pra eu beber quando cá dentro insinuar secura. Que eu sem amar não quero ter aprendizado de vida, não senhor. Que seja boa a sua continuação de noite, rapaz. Eu tenho que ir andando, porque o amanhã já é quase agora... Inté!

segunda-feira, 26 de agosto de 2013

Um Estranho Despertar




Por Carcius Jacinto

Era sábado, uma manhã fria de outono em Jackson, um condado do Kansas. Michael acorda com o seu cachorro lambendo sua cara e se arrastando aos seus pés umas oito da manhã. Na verdade ele deveria ter sido acordado às 7 horas para ir trabalhar, mas o despertador não tocou nem sua mãe viera lhe chamar.
Ele levanta assustado, preocupado com o atraso e corre para escovar os dentes e tomar banho, passa pela copa e percebe que ninguém tomou café, aliás que nem tem café na mesa. De repente ele cai na real e enfim percebe que está só em casa. Ninguém está nos quartos nem em nenhum lugar que ele procure. Então ele liga para o celular de todas as pessoas da casa e todos os números tocam normalmente... nos quartos de cada um!
Desesperado Michael abre a porta e parte em direção às casas dos vizinhos para saber se alguém viu seus familiares. Enquanto corre, ele vê passar um filme em sua cabeça sobre todos os momentos felizes que vivera com seus pais e irmãos. Não podia ser verdade aquilo que estava acontecendo. Mas era tudo tão real e ao mesmo tempo tão louco... Para sua surpresa, Michael não encontra ninguém nas ruas ou nas outras casas próximas da sua.
Então ele corre sem destino pelas avenidas do seu bairro gritando pelo nome de seus familiares e de repente ele escuta ao longe o som do alarme do relógio do seu quarto e acorda assustado e aliviado por ver que era tudo um sonho, apenas um terrível pesadelo.
Mesmo assim Michael levanta-se, dessa vez desconfiado, e procura pelos outros integrantes de sua família e para sua alegria estavam todos ali: mãe, pai, irmão, irmã e até o seu cachorro lambão estava embaixo da mesa.
Sem comentar nada Michael beijou todos e agradeceu a Deus por ter todos os seus familiares ali com ele. E então foi trabalhar pensando no seu sonho estranho e em como ele precisava dar valor àquelas pessoas tão especiais que ele via todos os dias, mas que estaria completamente perdido se de repente acordasse sem eles.


domingo, 21 de julho de 2013

Desejo

Victor Hugo 


Desejo primeiro que você ame,
E que amando, também seja amado.
E que se não for, seja breve em esquecer.
E que esquecendo, não guarde mágoa.

Desejo, pois, que não seja assim,
Mas se for, saiba ser sem desesperar.
Desejo também que tenha amigos,
Que mesmo maus e inconsequentes,
Sejam corajosos e fiéis,
E que pelo menos num deles
Você possa confiar sem duvidar.

E porque a vida é assim,
Desejo ainda que você tenha inimigos.
Nem muitos, nem poucos,
Mas na medida exata para que, algumas vezes,
Você se interpele a respeito
De suas próprias certezas.
E que entre eles, haja pelo menos um que seja justo,
Para que você não se sinta demasiado seguro.

Desejo depois que você seja útil,
Mas não insubstituível.
E que nos maus momentos,
Quando não restar mais nada,
Essa utilidade seja suficiente para manter você de pé.

Desejo ainda que você seja tolerante,
Não com os que erram pouco, porque isso é fácil,
Mas com os que erram muito e irremediavelmente,
E que fazendo bom uso dessa tolerância,
Você sirva de exemplo aos outros.

Desejo que você, sendo jovem,
Não amadureça depressa demais,
E que sendo maduro, não insista em rejuvenescer
E que sendo velho, não se dedique ao desespero.
Porque cada idade tem o seu prazer e a sua dor e
É preciso deixar que eles escorram por entre nós.

Desejo por sinal que você seja triste,
Não o ano todo, mas apenas um dia.
Mas que nesse dia descubra
Que o riso diário é bom,
O riso habitual é insosso e o riso constante é insano.

Desejo que você descubra,
Com o máximo de urgência,
Acima e a respeito de tudo, que existem oprimidos,
Injustiçados e infelizes, e que estão à sua volta.
Desejo ainda que você afague um gato,
Alimente um cuco e ouça o joão-de-barro
Erguer triunfante o seu canto matinal
Porque, assim, você se sentirá bem por nada.

Desejo também que você plante uma semente,
Por mais minúscula que seja,
E acompanhe o seu crescimento,
Para que você saiba de quantas
Muitas vidas é feita uma árvore.
Desejo, outrossim, que você tenha dinheiro,
Porque é preciso ser prático.
E que pelo menos uma vez por ano
Coloque um pouco dele
Na sua frente e diga "Isso é meu",
Só para que fique bem claro quem é o dono de quem.

Desejo também que nenhum de seus afetos morra,
Por ele e por você,
Mas que se morrer, você possa chorar
Sem se lamentar e sofrer sem se culpar.
Desejo por fim que você sendo homem,
Tenha uma boa mulher,
E que sendo mulher,
Tenha um bom homem
E que se amem hoje, amanhã e nos dias seguintes,
E quando estiverem exaustos e sorridentes,
Ainda haja amor para recomeçar.
E se tudo isso acontecer,
Não tenho mais nada a te desejar. 

Victor Hugo (1802-1885)

Vestígios de um mar inexistente . .

 Hélio Cunha,

  A nossa memória é tão curta, Pedro. Silêncio de anuimento. Ela vira-se, olha-o nos olhos e prossegue. - Há momentos em que o horizonte tudo promete, tudo parece alimentar, a vida quase faz lembrar um repasto de oportunidades. Mas há outros em que tudo se desvanece, tudo parece virar pó. Para quê, então, tanta ansiedade, tanto desejo de fulgor? Por onde paira o equilíbrio? Nova pausa, desta vez mais prolongada. Há coisas que requerem o seu tempo, a sua interiorização é luta constante. - O lado brilhante da vida depressa se esconde, por cada actor em cena há mil em lista de espera nos preâmbulos do guião. De novo a pausa. Queria-lhe dizer que, para algumas pessoas, a questão não era viver, tudo se resumia a sobreviver. Mas nada lhe disse. As referências são sempre importantes, sem elas a dignidade pouco ou nada respira. - Sabes, a simplicidade parece ser o caminho certo. Contudo, contrariando o seu significado, alcançá-la dá muito que penar. É tão delicada, essa marota...! O sol, ao longe, vai-se escondendo. As inquietações, bipolares, preparam-se para o rastilho que irá incendiar a noite. .franquias

sábado, 6 de julho de 2013

paz

(ad)

Não me apaixonei pela faculdade que fiz, não casei na igreja, não faço parte de nenhum grupo engajado em salvar o planeta, não sei falar mandarim, não virei gente famosa, não sei esquiar, não sou P.H.D. em nada... mas sinto uma paz danada quando olho pra mim e percebo que muitas dores não estão mais lá.
Já saí do olho do furacão.
Já sim, várias vezes.

quarta-feira, 3 de julho de 2013

O tempo e as jabuticabas


RUBEM ALVES



'Contei meus anos e descobri que terei menos tempo para viver
daqui para frente do que já vivi até agora. Sinto-me como aquela
menina que ganhou uma bacia de jabuticabas. As primeiras, ela
chupou displicente, mas percebendo que faltam poucas, rói o caroço.
Já não tenho tempo para lidar com mediocridades.
Não quero estar em reuniões onde desfilam egos inflados.
Não tolero gabolices. Inquieto-me com invejosos tentando destruir
quem eles admiram, cobiçando seus lugares, talentos e sorte.
Já não tenho tempo para projetos megalomaníacos.
Não participarei de conferências que estabelecem prazos fixos
para reverter a miséria do mundo. Não quero que me convidem
para eventos de um fim de semana com a proposta de abalar o milênio.
Já não tenho tempo para reuniões intermináveis para discutir
estatutos, normas, procedimentos e regimentos internos.
Já não tenho tempo para administrar melindres de pessoas,
que apesar da idade cronológica, são imaturos.
Não quero ver os ponteiros do relógio avançando em reuniões
de 'confrontação', onde 'tiramos fatos a limpo'.
Detesto fazer acareação de desafetos que brigaram pelo
majestoso cargo de secretário geral do coral.
Lembrei-me agora de Mário de Andrade que afirmou: 'as pessoas
não debatem conteúdos, apenas os rótulos'.
Meu tempo tornou-se escasso para debater rótulos, quero a
essência, minha alma tem pressa...
Sem muitas jabuticabas na bacia, quero viver ao lado de gente
humana, muito humana; que sabe rir de seus tropeços, não se encanta
com triunfos, não se considera eleita antes da hora, não
foge de sua mortalidade, defende a dignidade dos marginalizados,
e deseja tão somente andar ao lado do que é justo.
Caminhar perto de coisas e pessoas de verdade, desfrutar desse
amor absolutamente sem fraudes, nunca será perda de tempo.'
O essencial faz a vida valer a pena.


terça-feira, 2 de julho de 2013

Sentido da vida...



Arte de Vicente Romero 
















Vivemos em ritmo bastante acelerado e conturbado na atualidade, 
e nem damos conta que a vida é breve e frágil, e que não há 
intervalo para um segundo tempo. Às vezes reclamamos demais, 
fazemos comparações, ficamos infelizes com coisas sem importância, 
colocamos a culpa em tudo ao nosso redor, e essa insatisfação nos 
causa cegueira, e assim os dias passam e não notamos o mais 
importante que é valorizar nossas qualidades, nossa vida, nossa 
família, nossos amigos, nossas condições. Calamos quando deveríamos 
falar, sensibilizamo-nos com o que acontece no mundo, 
mas esquecemos do que se passa ao nosso redor, em nossa vida 
nosso interior. Falamos o que não devíamos ao invés de aprender 
com o beneficio do silêncio. Esquecemos de exercitar tantas coisas 
importantes que faz sentido e diferença, simples que faz um bem 
danado na nossa vida. Colocamos mesmo sem querer, 
barreiras entre assim como um sorriso, um abraço em família, um 
aperto de mão, e tantas outras coisas as pessoas que nos cercam que 
nos amam, e que são amadas... Inventamos distâncias mesmo estando 
juntos imaginando que estamos bem, e que tudo está perfeito, mais se 
engana quem pensa assim... Vivemos alguns instantes de perfeição, 
mas passamos o restante numa constante busca da felicidade, e nessa 
busca as horas passam a ser preenchidas pela angustia da insatisfação 
e pelo sentimento de sentir incompleto ou inadequado.

terça-feira, 25 de junho de 2013

60 ANOS OU 30 X 2

REGINA DE CASTRO
Ao completar sessenta anos, lembrei do filme “De repente 30” , em que a adolescente, em seu aniversário, ansiosa por chegar logo à idade adulta, formula um desejo e se vê repentinamente com trinta anos, sem saber o que aconteceu nesse intervalo.
Meu sentimento é semelhante ao dela: perplexidade.
Pergunto a mim mesma: onde foram parar todos esses anos?
Ainda sou aquela menina assustada que entrou pela primeira vez na escola, aquela filha desesperada pela perda precoce da mãe; ainda sou aquela professorinha ingênua que enfrentou sua primeira turma, aquela virgem sonhadora que entrou na igreja, vestida de branco, para um casamento que durou tão pouco!Ainda sou aquela mãe aflita com a primeira febre do filho que hoje tem mais de trinta anos.

Acho que é por isso que engordei, para caber tanta gente, é preciso espaço!
Passei batido pela tal crise dos trinta, pois estava ocupada demais lutando pela sobrevivência.
Os quarenta foram festejados com um baile, enquanto eu ansiava pela aposentadoria na carreira do magistério, que aconteceu quatro anos depois.
Os cinquenta me encontraram construindo uma nova vida, numa nova cidade, num novo posto de trabalho.
Agora, aos sessenta, me pergunto onde está a velhinha que eu esperava ser nesta idade e onde se escondeu a jovem que me olhava do espelho todas as manhãs.
Tive o privilégio de viver uma época de profundas e rápidas transformações em todas as áreas: de Elvis Presley e Sinatra a Michael Jackson, de Beatles e Rolling Stones a Madonna, de Chico e Caetano a Cazuza e Ana Carolina; dos anos de chumbo da ditadura militar às passeatas pelas diretas e empeachment do presidente a um novo país misto de decepções e esperanças; da invenção da pílula e liberação sexual ao bebê de proveta e o pesadelo da AIDS. Testemunhei a conquista dos cinco títulos mundiais do futebol brasileiro (e alguns vexames históricos).
Nasci no ano em que a televisão chegou ao Brasil, mas minha família só conseguiu comprar um aparelho usado dez anos depois e, por meio de suas transmissões,vi a chegada do homem à lua, a queda do muro de Berlim e algumas guerras modernas.
Passei por três reformas ortográficas e tive de aprender a nova linguagem do computador e da internet. Aprendi tanto que foi por meio desta que conheci, aos cinquenta e dois anos, meu companheiro, com quem tenho, desde então, compartilhado as aventuras do viver.
Não me sinto diferente do que era há alguns anos, continuo tendo sonhos, projetos, faço minhas caminhadas matinais com meu cachorro Kaká, pratico ioga, me alimento e durmo bem (apesar das constantes visitas noturnas ao banheiro), gosto de cinema, música, leio muito, viajo para os lugares que um dia sonhei conhecer.
Por dois anos não exerci qualquer atividade profissional, mas voltei a orientar trabalhos acadêmicos e a ministrar algumas disciplinas em turmas de pós-graduação, o que me fez rejuvenescer em contato com os alunos, que têm se beneficiado de minha experiência e com quem tenho aprendido muito mais que ensinado.

Só agora comecei a precisar de óculos para perto (para longe eu uso há muitos anos) e não tinjo os cabelos, pois os brancos são tão poucos que nem se percebe (privilégio que herdei de meu pai, que só começou a ficar grisalho após os setenta anos).
Há marcas do tempo, claro, e não somente rugas e os quilos a mais, mas também cicatrizes, testemunhas de algumas aprendizagens: a do apêndice me traz recordações do aniversário de nove anos passado no hospital; a da cesárea marca minha iniciação como mãe e a mais recente, do câncer de mama (felizmente curado), me lembra diariamente que a vida nos traz surpresas nem sempre agradáveis e que não tenho tempo a perder.
A capacidade de fazer várias coisas ao mesmo tempo diminuiu, lembro de coisas que aconteceram há mais de cinquenta anos e esqueço as panelas no fogo.
Aliás, a memória (ou sua falta) merece um capítulo à parte: constantemente procuro determinada palavra ou quero lembrar o nome de alguém e começa a brincadeira de esconde-esconde. Tento fórmulas mnemônicas, recito o alfabeto mentalmente e nada! De repente, quando a conversa já mudou de rumo ou o interlocutor já se foi, eis que surge o nome ou palavra, como que zombando de mim…
Mas, do que é que eu estava falando mesmo?
Ah, sim, dos meus sessenta.
Claro que existem vantagens: pagar meia-entrada (idosos, crianças e estudantes têm essa prerrogativa, talvez porque não são considerados pessoas inteiras), atendimento prioritário em filas exclusivas, sentar sem culpa nos bancos reservados do metrô e a TPM passou a significar “Tranquilidade Pós-Menopausa”.
Certamente o saldo é positivo, com muitas dúvidas e apenas uma certeza: tenho mais passado que futuro e vivo o presente intensamente, em minha nova condição de mulher muito sex…agenária!

Férias

Sónia M
Fechou a mala, vazia!
Esforçou-se em organizar as gavetas por ordem alfabética, durante todo o ano.
Ao abrir a letra "A", não houve abraço perdido, que conseguisse agarrar. 
Na "B", beijos sem toque, sem sabor...
Abriu-as todas, excepto uma, a letra "T". 
Sabia-a demasiado cheia, para a voltar a fechar.
Percebeu que tudo o que necessitava, estaria à sua espera no destino.
Pendurou a tristeza no chaveiro detrás da porta, fechou a mala, vazia e, partiu!
Ao chegar, no reencontro, afogou os pés até aos tornozelos, 
no mar salgado que lhe escorria pelo rosto...
enquanto o sol ,que lhe escapava pela boca, a secava no mesmo instante...
















Sónia M

Era uma vez um "poeta" que mastigava as letras...

Sónia M

Ao André, o menino dos porquês.



Numa manhã fria, como qualquer outra, encontrei o calor à porta de casa.
Estava vestido de branco, com um chapéu às cores, sentado no primeiro degrau da entrada.
Mantinha a mão direita, com os dedos a apontar para uma folha branca, que segurava nos joelhos. Todos os pássaros da cidade sobrevoavam a minha rua em círculos, como se esperassem que alguém, de repente, lhes atirasse migalhas de pão.
A imagem era tão irreal, que cheguei a pensar que ainda dormia e me passeava pelo sonho.
Belisquei-me. Doeu! Pensei em voltar a entrar em casa, mas quando dei um passo para trás, senti frio. Então, decidi aproximar-me. Desci, cautelosa, todos os degraus. À medida que me aproximava, ficava mais quente. Era como um bafo cálido que me envolvia todo o corpo.
Sem pensar, sentei-me ao seu lado. Foi então que vi que pelos seus dedos, a apontarem para aquela folha branca, desciam, brincalhonas e em grande algazarra, as letras que se amontoavam no seu centro.
Riam, saltavam por cima umas das outras, abraçavam-se, beijavam-se e eu, incrédula,
voltei a beliscar-me. Voltou a doer! Esfreguei os olhos, mas continuava a vê-las e a ouvi-las!
Eram tão alegres e coloridas como o chapéu às cores.


Com muito cuidado, como se não quisesse perder nenhuma, recolheu, com as mãos em concha, todas as letras da folha e levou-as à boca. Começou a mastigá-las. As bochechas eram agora gordas e redondas e, sempre que os lábios se entreabriam, saltavam pequenos pedaços, como raspas de lápis de cor, que caíam no chão. Os pássaros apressavam-se a recolhê-los e imediatamente ficavam azuis, tão azuis como o céu. Já não os via, mas sabia que eles estavam lá.
E ele mastigava...e mastigava, arredondava com os dentes cada letra, moldava-as e colava-as com a saliva umas às outras. Depois, com dois dedos em forma de pinça, puxava pelo canto da boca, palavra a palavra, e com elas encheu a folha branca. Aproximei a cabeça do seu ombro e comecei a ler o texto.
O que li era tão bonito, que depressa me chegou ao coração.
Quis perguntar como se chamava e, quando finalmente o fiz, a voz saiu-me rouca, quente, como um sussurro.
- Como te chamas?
E ele respondeu - Poesia.
Naquele dia, acho que encontrei um poeta.


Sónia M