terça-feira, 29 de outubro de 2013

Tenho Fome de Inverno

Pulanito


 Gosto dos dias quando começam a empequenecer.
Daqueles que quando chego a casa e já só uma réstia de claridade sobra no horizonte a dizer-me que para lá do que vejo só existe o que posso imaginar.

Esta noite trovejou. Acordei com o ribombar dos trovões e com as primeiras notas de uma música sincopada a derramar a melodia da água bendita que anuncia o final do verão. Eram quatro da manhã. Uma hora insuspeita para quem irrompe pelo silêncio da madrugada, fazendo-se anunciar como se de irados deuses se tratassem, sem pedir favores nem licença. Fiquei acordado experimentando o medo que sempre sinto quando a revolta da natureza nos resolve presentear com avisos deste calibre.

Penso nos dias frios que estão para chegar, no aconchego do lar e no crepitar da lenha que me há de fazer companhia nos tempos que aí virão.

Penso na sincopada dança das labaredas que de tanto as fixar me hipnotizam e transportam para mundos que nem ouso aqui relatar. E sinto, que mais um ciclo se encerra para outro de novo se nos escancarar, e assim, cumprirmos o ritual da vida que não é mais do que andarmos de estação em estação no Expresso da Existência, até que um dia nos apeemos na estação terminal desta viagem.

Tenho fome de inverno e do cheiro a lenha queimada que perfuma o entardecer quando aos fins-de-semana aporto à minha aldeia.
Tenho fome de inverno, com ribeiras a transbordar, mais o perigo de as atravessar.
Tenho fome de inverno, com ventanias a zunir por buracos e frestas tentando entrar sem que para tal haverem sido convidadas.
Tenho fome de inverno, altura em que a poesia da vida e aquela que se traduz em letra de forma me visita mais amiúde, e isso, é privilégio que todos os dias agradeço, mesmo naqueles em que esta parece definitivamente de mim afastada.
Tenho fome de inverno, com comida de panela e camisolas de gola alta.
Tenho fome de inverno, com bolotas assadas no fogo debaixo da trempe.
Tenho fome de inverno, com natais de mesa farta e lengalengas de contar a petizes ao colo sentadas com a perna a fazer de cavalinho. Lá vai o Manel ceguinho, em cima dum burrinho, o burrinho é fraco, em cima dum macaco……
Tenho fome de inverno para te amar ao anoitecer e em todas as noites de insónia em que desenho com a ponta dos dedos vezes sem conta a silhueta da tua nudez.
Tenho fome de inverno para me poder sentar ao postigo e ver a vida que passa em tons de cinza prata. Tenho fome de inverno, para mergulhar no meu próximo livro que já me baila na cabeça há tanto tempo, mas que, confesso, tenho medo de nele me afogar.
Tenho fome de inverno, para poder voltar a abraçar-te sejas lá tu quem fores.
 Tenho fome de inverno, porque… tenho fome de ti!

segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Quero que decidas


 

Não chegarás a lugar nenhum
Parada à frente de minha porta

Sei que o mundo te convida
Com uma estrada livre e infinita

Mas um vento frio começa a soprar
Neste final de dia

As nuvens estão densas
E já sinto o cheiro da terra molhada

Não há mais tempo
Preciso confinar os bichos

Vedar as frestas
E cerrar os trincos

Aqui dentro o fogo está aceso
A sopa quente

E há uma cama limpa e vazia
Sugiro que entres

domingo, 20 de outubro de 2013

quando




Quando a criança era criança

Quando a criança era criança,
caminhava balançando os braços,
queria que o riacho fosse um rio,
o rio uma torrente
e que essa poça fosse o mar.
Quando a criança era criança,
não sabia que era criança,
tudo lhe parecia ter alma,
e todas as almas eram uma.
Quando a criança era criança,
não tinha opinião a respeito de nada,
 não tinha nenhum costume,
sentava-se sempre de pernas cruzadas,
saía correndo,
tinha um redemoinho no cabelo
e não fazia caretas pras fotografias.
Quando a criança era criança
era a época destas perguntas:
Por que eu sou eu e não você?
Por que estou aqui, e por que não lá?
Quando foi que o tempo começou, e onde é que o espaço termina?
Um lugar na vida sob o sol não é apenas um sonho?
Aquilo que eu vejo e ouço e cheiro
não é só a aparência de um mundo diante de um mundo?
Existe de fato o Mal e as pessoas realmente más?
Como pode ser que eu, que sou eu,
antes de ser eu mesmo não era eu,
e que algum dia, eu, que sou eu, não serei mais quem eu sou?
Quando a criança era criança,
mastigava espinafre, ervilhas, bolinhos de arroz, e couve-flor cozida,
e comia tudo isto não somente porque precisava comer.
Quando a criança era criança,
uma vez acordou numa cama estranha,
e agora faz isso de novo e de novo.
Muitas pessoas, então, pareciam lindas
e agora só algumas parecem, com alguma sorte.
Visualizava uma clara imagem do Paraíso,
e agora no máximo consegue imaginá-lo,
não podia conceber o vazio absoluto,
que hoje estremece no seu pensamento.
Quando a criança era criança,
brincava com entusiasmo,
e agora tem tanta excitação como tinha,
mas só quando pensa em trabalho.
Quando a criança era criança,
era suficiente comer uma maçã, uma laranja, pão,
E agora é a mesma coisa.
Quando criança era criança,
amoras enchiam sua mão como somente as amoras conseguem,
e também fazem agora, nozes frescas machucavam sua língua,
parecido com o que fazem agora,
tinha, em cada cume de montanha, a busca por uma montanha ainda mais alta,
e em cada cidade, a busca por uma cidade ainda maior,
e ainda é assim,
alcançava cerejas nos galhos mais altos das árvores como, com algum orgulho,
ainda consegue fazer hoje,
tinha uma timidez diante de estranhos,
como ainda tem.
Esperava a primeira neve,
como ainda espera até agora.
Quando a criança era criança,
arremessou um bastão como se fosse uma lança contra uma árvore,
e ela ainda está lá, balançando, até hoje.

Peter Handke
(não sei de quem é a tradução) 

receitas vegetarianas - que me faça andar

12 de setembro de 2013


receitas vegetarianas - que me faça andar



O medo, mãe, me paralisa. 
mãe, me dá uma comida que me faça andar?

Meu filho, se há um penhasco às suas costas e um mar desconhecido à sua frente:
espera, respira. não há mágica. que a vida siga seu curso.

Esse fluir, mãe, preciso disso, que deixe fluir: que comida, mãe, transforma o mundo?

Que mundo, meu filho, que mundo? o tanto de mundo que nos cabe é a vida vivida no fluxo, é essa respiração.

Mas eu tenho medo, mãe, não consigo me acalmar. meus ouvidos doem
.
Ouça, ouça este nada, meu filho, o som do mar cada vez mais distante. ouça. o que pode se alimentar de distâncias e contemplações. coma silêncios, meu filho, comidas longas, que esperam no escuro, que esperam no fundo da terra, suspensas no tempo. coma, meu filho, o que sabe esperar sem medo
.
Uma comida assim, mãe, me dá?

Uma polenta, meu filho. porque o milho, veja, os longos colmos a se abrir folhas, uma grama gigante. corredores esvoaçantes é o milharal. o pendão cresce sincronizado com os estigmas e as chuvas: cada pequena futura semente se liga em medo e fio à espera de um pólen, cabelos verdes avermelham e se alongam, estiram-se: pensa se cada uma não espera ávida? em terra seca, nada de grãos. e de nada adiantaria esse um fio, esta esperança. depois, pensa o grão seco: pilão, grão moído, fino, fubá. o medo que morava no grão. a suavidade que é ser fubá. pensa, meu filho, pensa. a água fervente e salgada. mistura o fubá macio com água – fria - e despeja esse creme, devagar para que ferva e permaneça fervente por uma hora, devagar, lento, como um abraço que também afasta o medo. não se esqueça: no fim de tudo, manteiga, que derreta.

A doçura amaina o medo, mãe? faz um bolo de fubá pra mim. doce e cremoso, faz?

Meu filho, que doçura? se até os loucos têm medo. o medo preserva a vida como uma faca que se saiba usar. o medo é que dá coragem. sangue farto, gesto rápido e forte, resistência à dor. procure, aí dentro, esse bicho que grita, que relincha, revira, que bate os cascos.

Esse bicho sou eu, mãe, fragilidade e ossos, ele não sabe seguir.

Sabe, meu filho, esse bicho sabe seguir, e também morde, e mata, e nos faz perigosos. monte-o, meu filho, desmonte-se. entre na floresta escura do seu medo. deixe as armas sobre a mesa.

Faca, mãe, a faca eu sei usar.

Com delicadeza, meu filho, não esse cavalo enlouquecido, esse fogo nos olhos. a fúria que ele contém
.
A faca, mãe. uma comida que me faça andar.

Ali, no chão, procure. os cogumelos não são aquilo que você vê. mas, agora,  procure o que se pode ver, essa quase floração de umidade e calor. uma floração inexata, busque, entre húmus e folhas secas. cuide dos seus passos, dos gestos impensados, não arranque o fino fio que desde baixo os sustém: estrutura que dorme invisível no fundo da terra, no fundo da matéria que orgânica vive sem a gente se dar conta, meu filho, e, mais que tudo, não se confunda, não traga veneno em vez de comida. ali será quase escuro, os olhos se acostumam, todos os sentidos, as mãos. enquanto esporos voam, se esparramam, e novos fios invisíveis sob a terra criarão novas teias, pequenas fissuras. as cores, a forma, meu filho, esteja atento. não arranque, corte, corte delicadamente. esta sua faca. e volte.

Mãe, eu trouxe, veja. meu medo capturado desde o antigo, e trouxe os cogumelos, lindos
.
Alguns são venenosos, meu filho
.
Foi a pressa, mãe, a fome do que me tire o medo.

Não tenha pressa, meu filho, espere abrir-se cada momento. não se avança cegamente.

Era o escuro, mãe.

Era o medo, filho. ponha a panela de ferro no fogo, que esquente dentro, os cogumelos lavados e sem galhos sem musgos sem restos da terra de onde vieram. e só estes, que não nos fazem mal. depois sal. veja, soltam água, perdem toda a água que trouxeram da umidade das florestas. persevere, meu filho. depois azeite, alho, salsinha. se quiser cebola, se quiser uma pimenta, se quiser, com a polenta, um creme de leite, leve, fresco. quente. porque os mamíferos são esta paciência. não obstrua caminhos, meu filho, não deixe o medo, e ao mesmo tempo, filho, deixe.
...
Mãe...

Diga, meu filho...

das coisas mais doces que um homem pode ouvir



27 de setembro de 2013

das coisas mais doces que um homem pode ouvir 

desdobrou o mapa. abriu. abriu novamente e mais uma vez até cobrir a mesa toda. no intrincado de caminhos que pareciam artérias e ondulações que sugeriam planaltos e planícies, ele disse: você está aqui. e apontou com o dedo: o onde eu estava era um ponto. se o lugar era quase invisível, eu era um nada. um suspiro na vastidão.
perguntei das estradas, as condições. ele explicou com calma, naquela luz oscilante, que não era claro se seria possível passar nas partes mais próximas ao rio, ali onde ele se expande. chovia. chovia sem parar. o frio. o argiloso. ardiloso. ácido.
meu olhar caiu desconsolado sobre o mapa, ele me propôs que eu passasse a noite ali, dormisse, no dia seguinte, seria sempre outro dia. aquilo era, por fim, uma coisa doce naquelas últimas horas. eu precisava. e aceitei.
ele me mostrou um quarto, que era uma espécie de depósito, com uma velha mesa de pebolim abandonada, um violão sem cordas, uma poltrona, caixas de conteúdos inexatos. entre a porta e o amontoado, uma cama, que me esperava desde sempre. depois ainda disse: tome uma ducha, se quiser. o banheiro é no final do corredor, já arrumo uma toalha.
saí do banho, a roupa era a mesma mas tudo agora aquecido. e bom. ouvi me chamar e o som vinha da sala onde antes o mapa sobre a mesa. agora, uma sopa grossa de abóbora. três pratos. colheres. faca. pão, manteiga numa vasilha com água. copos. vinho tinto. me apresentou a mulher. que me sorriu. e perguntou. e perguntou. e perguntou enquanto eu respondia, respondia, respondia. depois eles também contaram. e eu perguntei. e logo perguntas, histórias e respostas se confundiam no calor da sopa e do pão. lá fora chovia.
ele tirou os pratos, a panela, as colheres, a faca. ela e eu continuamos desfiando conversas que somos mais capazes com desconhecidos, numa noite fria e chuvosa, num lugar quase inexistente do mapa. ele voltou da cozinha trazendo quindins: amarelos-gema em pequenos pires brancos: como se ovos fritos em doçura. a doçura.
comi o primeiro. enquanto comia em êxtase perguntei – apenas para distraí-la – como se faz quindins assim? e ela me falou, quase num sussurro, de ovos, de separar as gemas, de açúcar fino pó, me falou de coco ralado e úmido. manteiga. eu ouvia, a chuva, a sala em luz obscura, eu via, um ponto no mapa que cresce. eu crescia também.
aos poucos, a doçura fazia fundir aquele cheiro de terra molhada ao vapor antigo da bosta das vacas que a gente pisava no curral, a memória vaga de um cuidado, de uma alegria, de uma solidão, da sombra oscilante de uma lamparina no copo com água no canto do quarto, a madrugada despontando em mugidos. lembrança de pecados e medos espalhados ao pé da cama.
nas mãos de pele fina riscada, as veias como um intrincado de estradas, sobreposição de mapas. o movimento que fazia para dizer em gestos o ralar bem fino o coco, o misturar ao açúcar, à manteiga. um creme. o peneirar as gemas a desviar com delicadeza a película que as envolve. o mexer e remexer, até a consistência de uma gemada.  e quando já comia o terceiro quindim, tudo em mim se perdoara, toda a dor. e ela a insistir nas forminhas: preencha, preencha cada uma, até a boca, sem medo: a chuva sempre preenche os rios. e só às vezes eles vazam.

ESQUECI DE ADORMECER

Esqueci de adormecer.

Ana Rgot

Fiquei inventando histórias para mim. fazendo de conta que a mais bonita de todas ainda não me aconteceu.-
Eu sou aquela de quem tens saudade,
a princesa do conto ´era uma vez...´ - nos olhos trago ondas de energia, na pele um vasto campo de algodão ao som das rajadas de vento e flor . plantei luas nos alpendres da tarde e estrelas cadentes que quebrassem vidraças na revolta dos sentidos . levei tudo que meus olhos pudessem colher e minhas mãos sonhassem e cantei todas as canções que meu silêncio desejasse na linguagem antiga, aquela que trazemos no corpo e existe para além de nós....