segunda-feira, 15 de setembro de 2008

A ÚLTIMA ENXADINHA DO MEU PAI

João Almeida

A última enxadinha do meu pai ainda existe. Capinei com ela , Maria também, até que o meu irmão resolveu transforma-la em peça de recordação, aliás atitude muito justa, assim ela foi pendurada num canto da sua casa do sítio. Quando decidi retornar às minhas origens, não pensei que iria remexer tanto com a terra, pois é a tarefa que me da mais prazer, então sigo horas capinando, chegando terra, fazendo “bunda suja”, cavando, plantando e colhendo, assim conheço todo tipo de mato, não gosto da expressão “erva daninha” tenho um certo respeito por elas, os meus olhos de “biólogo rude” enxergam mais além, mas não tem jeito, tenho que retira-las para abrir espaço para as plantações e depois mante-las fora da área por uma questão de reserva dos nutrientes que os meus pés de aipim e cia. precisam para desenvolver-se. O que o “biólogo rude” enxerga mais além são certos detalhes dos matos que nascem sem ninguém plantar e com uma rapidez extraordinária. A “Balaio de Veio” apesar do seu tamainho tem uma copa redonda com flores esféricas lilás, suponho que cada uma ocupe mais ou menos um metro quadrado. Já o “Canela de Anum” é o contrário, chega a mais de um metro, de caule fino amarronzado se assemelha a canela do pássaro que lhe empresta o nome. A Beldroega é um caso à parte, amanhece quietinha e nos primeiros raios do sol se enfeita de flores amarelas, colorindo o campo e recebendo as visitas de abelhas silvestres que nelas colhem a matéria-prima para fabricar doce mel.. Já vi na loja de produtos agrícolas “sachês” com sementes de Beldruegas pra ser plantada como hortaliça, mas pra que sementes se ela se multiplica aos milhares ?, e se não arrancar direito ela volta a viver sorrindo com suas flores . Tonho disse, que pra se livrar de Beldruega, só se arrancar, botar no carrinho de mão, abrir um buraco e enterrar. A abundante plantinha tem os talos cheio d´água e o melhor é que na Internet tem até receita de como preparar várias comidas com Beldruega. Ai se o povo da região levasse a sério estas notícias...enxada pra Beldruega nunca mais, até que o povo enjoasse da iguaria.. Ninguém por lá sabe, nem o meu vizinho Timba, meio curandeiro fazedor de garrafadas e chás, mas, a Beldruega é bom remédio nas afecções do fígado, bexiga e rins, o suco cura inflamações nos olhos, os talos e as folhas machucadas aliviam a dor das picadas de insetos e queimaduras e facilita a cicratização das feridas. Acho que vou ser um protetor das Beldruegas, a que eu arrancar eu planto noutro lugar e Balbina e Maria que se vire, quero Beldruega na mesa.
A variedade de plantas se eu pudesse catalogar seria muito extensa, o meu negócio mesmo é levar a vida capinando pois assim torno as minhas horas mais interessantes, uma mordidinha de formiga aqui, uma ferroada de maribondo ali, de vez em quando um susto com uma cobra coral e outras espécies, até que chegue quatro horas da tarde, horário definido para encerrar minhas atividades, assim sendo pego o caminho de casa, ou melhor, da sombra rendada da Sibipiruna, ou na da Mangueira que engatinhou até o jardim. Descalço as botas, e fico a esperar as visitas dos pássaros ouvindo as músicas que se dispersa pelo sítio saindo da vitrola moderna de Maria.(detesto os termos “home theater”.)..não se ajusta ao romantismo da hora muito menos ao gênero musical, tão poderoso que faz ela ter preguiça de descer da rede e vir me acompanhar no prazer visual do fim de tarde. Mas ela vem, como vem os Tiês, os Sanhaços, os Cardeais, Pegas, Bem-te-vis, Sabiás, Tzius,as rolinhas Fogo-pagô e Caldo de feijão, e tantos outros amigos de asas, e eu bebericando uma cervejinha até o dia começar escurecer.

terça-feira, 9 de setembro de 2008

ARTE DE SER FELIZ

Cecília Meireles





Houve um tempo em que minha janela se abria para um chalé. Na ponta do chalé brilhava um grande ovo de louça azul. Nesse ovo costuma pousar um pombo branco. Ora, nos dias límpidos, quando o céu ficava da mesma cor do ovo de louça, o pombo parecia pousado no ar. Eu era criança, achava essa ilusão maravilhosa, e sentia-me completamente feliz. Houve um tempo em que minha janela dava para um canal. No canal oscilava um barco. Um barco carregado de flores. Para onde iam aquelas flores? quem as comprava? em que jarra, em que sala, diante de quem brilhariam, na sua breve existência? E que mãos as tinham criado? e que pessoas iam sorrir de alegria ao recebe-las? Eu não era mais criança, porém minha alma ficava completamente feliz.

Houve um tempo em que a minha janela se abria para um terreiro, onde uma vasta mangueira alargava sua copa redonda. À sombra da árvore, numa esteira, passava quase todo o dia sentada uma mulher, cercada de crianças. E contava histórias. Eu não a podia ouvir, da altura da janela; e mesmo que a ouvisse, não a entenderia, porque isso foi muito longe, num idioma muito difícil. Mas as crianças tinham tal expressão no rosto, e às vezes faziam com as mãos arabescos tão compreensíveis, que eu participava do auditório, imaginava os assuntos e suas peripécias e me sentia completamente feliz.

Houve um tempo em que a minha janela se abria sobre uma cidade que parecia feita de giz. Perto da janela havia um pequeno jardim quase seco.

Era uma época de estiagem, de terra esfarelada, e o jardim parecia morto. Mas todas as manhãs vinha um pobre homem com um balde e, em silêncio, ia atirando com a mãos umas gotas de aspersão ritual, para que o jardim não morresse. E eu olhava para as plantas, para o homem, para as gotas de água que caíam de seus dedos magros, e meu coração ficava completamente feliz.

Às vezes abro a janela e encontro o jasmineiro em flor. Outras vezes encontro nuvens espessas. Avisto crianças que vão para a escola. Pardais que pulam pelo muro. Gatos que abrem e fecham os olhos, sonhando com pardais. Borboletas brancas, duas a duas, como refletidas no espelho do ar. Marimbondos que sempre me parecem personagens de Lope deVega. Às vezes, um galo canta. Às vezes, um avião passa. Tudo está certo, no seu lugar, cumprindo o seu destino. E eu me sinto completamente feliz.

Mas, quando falo dessas pequenas felicidades certas, que estão diante de cada janela, uns dizem que essas coisas não existem, outros que só existem diante das minhas janelas, e outros, finalmente, que é preciso aprender a olhar, para poder vê-las assim.


sexta-feira, 5 de setembro de 2008

O AMOR IMPOSSÍVEL

NICOLAS BEHR


quando deixo o meu amor impossível na rodoviária,
de noitinha, meus olhos compridos seguem-na até perdê-la
no turbilhão das gentes


imagino meu amor impossível na fila do ônibus, altiva,
altaneira, orgulhosa de si e de mais um dia de trabalho


os olhares em direção ao meu amor impossível são muitos

— olhares de cobiça como os meus (o olhar dos famintos)


alguém oferece ao meu amor impossível

um pastel, um caldo de cana ou um chocolate
hoje não, outro dia (meu amor impossível é educadíssima!)


meu amor impossível entra no ônibus, passa pela catraca

— o cobrador finge que separa o troco mas olha os seios do
meu amor impossível, de soslaio, exatamente como eu faço