sábado, 31 de outubro de 2009

“Primavera” –

Cecília Meireles

"A primavera chegará, mesmo que ninguém mais saiba seu nome, nem acredite no calendário, nem possua jardim para recebê-la. A inclinação do sol vai marcando outras sombras; e os habitantes da mata, essas criaturas naturais que ainda circulam pelo ar e pelo chão, começam a preparar sua vida para a primavera que chega.
Finos clarins que não ouvimos devem soar por dentro da terra, nesse mundo confidencial das raízes, — e arautos sutis acordarão as cores e os perfumes e a alegria de nascer, no espírito das flores.
Há bosques de rododendros que eram verdes e já estão todos cor-de-rosa, como os palácios de Jeipur. Vozes novas de passarinhos começam a ensaiar as árias tradicionais de sua nação. Pequenas borboletas brancas e amarelas apressam-se pelos ares, — e certamente conversam: mas tão baixinho que não se entende.
Oh! Primaveras distantes, depois do branco e deserto inverno, quando as amendoeiras inauguram suas flores, alegremente, e todos os olhos procuram pelo céu o primeiro raio de sol.
Esta é uma primavera diferente, com as matas intactas, as árvores cobertas de folhas, — e só os poetas, entre os humanos, sabem que uma Deusa chega, coroada de flores, com vestidos bordados de flores, com os braços carregados de flores, e vem dançar neste mundo cálido, de incessante luz.
Mas é certo que a primavera chega. É certo que a vida não se esquece, e a terra maternalmente se enfeita para as festas da sua perpetuação.
Algum dia, talvez, nada mais vai ser assim. Algum dia, talvez, os homens terão a primavera que desejarem, no momento que quiserem, independentes deste ritmo, desta ordem, deste movimento do céu. E os pássaros serão outros, com outros cantos e outros hábitos, — e os ouvidos que por acaso os ouvirem não terão nada mais com tudo aquilo que, outrora se entendeu e amou.
Enquanto há primavera, esta primavera natural, prestemos atenção ao sussurro dos passarinhos novos, que dão beijinhos para o ar azul. Escutemos estas vozes que andam nas árvores, caminhemos por estas estradas que ainda conservam seus sentimentos antigos: lentamente estão sendo tecidos os manacás roxos e brancos; e a eufórbia se vai tornando pulquérrima, em cada coroa vermelha que desdobra. Os casulos brancos das gardênias ainda estão sendo enrolados em redor do perfume. E flores agrestes acordam com suas roupas de chita multicor.
Tudo isto para brilhar um instante, apenas, para ser lançado ao vento, — por fidelidade à obscura semente, ao que vem, na rotação da eternidade. Saudemos a primavera, dona da vida — e efêmera."
Cecília Meireles

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

QUEM SOU EU?

João Almeida Santos

Quem sou eu seu moço?
Um aposentado!
despejado por aqui ha muitos anos atrás,
quando o frio cortava feito navalha
e eu vestido numa camisa"volta ao mundo",
e um monte de sonhos perdidos...
Quem sou eu seu moço?
Um aposentado....
Mas fui um equilibrista nos andaimes da vida,
pelejei, amei e quando já sabia ser filho
fui pai....fui pai...
Pai jovem, pai meia idade
E agora pai meio envelhecido...
E ainda querendo ser poeta!
Não quero a Academia Brasileira de Letras,
mas eu tenho meu tamborete no varandado da minha casa,
onde os sonhos que se apagam
me permitem versar sem rima,
a pergunta:
por que?

terça-feira, 13 de outubro de 2009

Chove chuva

O compadre Jorge Benjor já cantava e pedia: chove sem parar. Só assim pra escutar o mato crescer em paz

Depois de um longo período de estiagem e como diz a sabedoria do homem da roça, dos meses sem érres, e muitos outros, a chuva veio. Veio amenizar a secura do ar irrespirável e o calor das tardes/noites de paredes mornas nos quartos da casa. Chegou de mansinho a chuva, como convém; com a esperança de todos para que se tarde a ir. Que permaneça o tempo suficiente para molhar a terra e permitir o plantio das culturas do tempo das águas.

Veio abastecer a mina d´água, escondida na mata da grota, para engrossar o jorro que esvai por um cano de bambu improvisado.
E, noite adentro, os pingos sucediam um ao outro pelas calhas, resvalando ao chão, depois, pelos cantinhos e procurando os veios das entranhas da terra.

E, quando o dia chegou, para lá da janela do quarto e do muro do quintal, lá no mato os passarinhos avisam que também vieram. O sanhaço e a saíra se assanham, a tesoura revoluteia no ar à caça de insetos, o tiziu dá pios e saltos nos mourões, a coleirinha e o bigodinho lançam seus primeiros trinados.

E o papa-capim anuncia sua volta, depois de uma longa viagem, avisando que é hora de acasalar e aninhar, recriando a vida naquele coraçãozinho minúsculo e apressado. Um broto novo e tímido aponta no galho alto da árvore centenária.E o matuto respira aliviado, reza e agradece. Choveu, enfim...

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

Desabafo

14/08/2009
Dr. Sócrates ex jogador de futebol

A alma doída não cicatriza mesmo quando estamos acostumados com a insensatez dos que possuem os meios para nos esmagar com suas palavras amargas decorrentes sei lá do quê.

Choramos lágrimas surgidas bem lá de dentro do nosso ser, subindo as paredes da emoção com uma determinação que gravidade nenhuma jamais seria capaz de detê-las. E, lá no alto, irrompem como
a lava dos mais ativos vulcões. Em seguida, deixam-se levar pela face, como as límpidas águas de cachoeiras, como mantos divinos a cair sem queixas pelos ares inertes da natureza assassinada pela incoerência humana.

Infelizmente delas não conhecemos mais que isso, pois nunca poderemos estar sob a sua proteção, livres das agruras oferecidas desbragadamente pelos espíritos mais sórdidos.

O arrepio a desgrenhar os nossos, por todo o corpo, dobra-os como folhas secas de outono sem, no entanto, derrubá-los e finalmente livrá-los do destrato com que são vistos pelos caules fraudulentos que os acolheram durante a primavera mais florida.

Ficar sem razão mais dor nos causa, e o sentir sem culpa nos desespera perante o coração sangrante sentido aqui dentro, como uma hemorragia sem fim e sem paz. Cala nossa voz sem que dela possamos extrair a reação de que necessitamos.

Enforca nosso olhar, deixando-o sem luz e sem cor, muito menos com a profundidade da reflexão tornada fundamental para buscar o entendimento e o conhecimento da origem da lança certeira, a nos flagelar e congelar sem piedade.

Tudo se turva e se dobra à nossa frente. Nossos entes queridos sofrem em silêncio brutal, sem poder nos socorrer, já que as armas dessa guerra jamais lhes foram apresentadas.

É uma guerra sem vencedores desde sempre. Mesmo assim temos de fazer parte dela e escapar com vida, ainda que feridos na essência de nossa frágil existência. A face contrita dos que nos cercam nos endurece, faz padecer. Um sentimento de impotência nos toma por inteiro, imobilizando-nos na fraqueza expressa na impotência do grito a explodir na garganta, do gesto que nos apequena em uma gaiola sem portas e sem alpiste.

Contudo, somos poucos, ainda que muito engajados para esmorecer por tão pouco. Muito pouco parte daí e aí voltará, pois não há quem possa imaginar que alguns sentimentos menores possam enfrentar gigantes que se oferecem em sacrifício pela busca do que há de melhor no ser humano e no humanismo com o claro desejo de dias e homens melhores. Para que essa melhoria se expanda a cada gene que há de nascer, até que o nosso universo desapareça por completo.

Muito diferente desses seres que não conseguem enxergar que são finitos na infinita incapacidade de sentir compaixão pelo outro, como se esta fosse uma nojenta e insana forma de se sentirem seres sociais e sociáveis.

Não somos tiranos, muito menos estamos arraigados em alguma seita que explora os desavisados e ignorantes que nada têm. E o que têm enviam aos seres que deles só querem a vida como se dela utilizassem para sua pretensa imortalidade capitalista e mercantilista.

Não somos também ingênuos a ponto de esperar pelo possível em apenas uma encarnação ou geração, e sim um grupo de loucos por justiça, carinhos e solidariedade. Sonhamos com um mundo que se não for o ideal que dele se aproxime ou, pelo menos, que todos queiram construir com zelo e cuidado para que nada se desvie e desvirtue.

Não somos perfeitos porque a perfeição não faz parte de nossas possibilidades terrenas, muito menos imaginamos assistir a uma comunhão coletiva de ideias semelhantes para se formar uma procissão de fiéis defensores do caminho em que acreditamos.

Queremos apenas deixar uma dúvida, uma sintética posição de que é possível sonhar com o impossível de hoje para encontrar amanhãs mais ensolarados e aquecidos que esquentem e iluminem determinada facção da humanidade.

Um sonho apenas que, de tanto ser mais do que nossa limitada capacidade possa entender, incomoda, incomoda e incomoda a tantos que dele nada sabem, ou melhor, nada querem saber. Só sabem que o que queremos é bom e o bom não é tão bom para eles.

Quando um de nós é agredido, algo insanamente frequente, nos tornamos mais guerreiros e acreditamos ainda mais no que estamos fazendo, pensando e pulverizando pelos ventos que por nós passam desavisados de nossa intenção.

Chegamos até aqui devido à coerência. Que a voz e a cultura popular continuem a nos proteger desta peste vil.