segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

Doce de buriti


Abraçou e beijou aquele filho como fosse um soldado partindo para a guerra, tive de sair de perto pra não cair em prantos

15/02/2012

Jade Percassi

Ilustração: Kanelstrand/CC

– Quando crescer, ninguém mais vai mandar em mim! Vou-me embora pro sertão!

– E você lá sabe o que é o sertão, minha filha? – meu avô perguntava, desafiador.

Não, eu não sabia. Achava que os mapas, pintados pacientemente nas aulas de geografia, significavam coisas que eu não alcançava entender. De ouvir dizer, de ler notícias, respondia de pronto que era uma região do nosso país, que se estende por boa parte da Bahia, Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Piauí; por todo o Ceará e por uma pequena parte do Sergipe, Alagoas e o norte de Minas Gerais. Que lá chovia muito pouco, e o clima era chamado de semiárido porque lembrava o deserto. Empostava a voz: a seca traz muitos problemas para as pessoas, que sofrem com a perda de suas lavouras e com a falta de água para beber. Meu avô riu de se dobrar. “Menina atrevida!”, resmungou. Deu um último gole, cantarolou o Assum Preto e saiu sem dizer mais nada.

Pois um dia eu tive de ser moça e me embrenhar por aí. Quando não, já estava atravessando o Velho Chico de balsa de tronco, tremendo de medo daquilo virar. Na última cidade da Bahia, o ônibus diário já havia saído. Ter de pedir carona para a polícia militar até a fronteira do estado era apenas o começo da longa jornada. Era dezembro, mas as chuvas não haviam dado o ar da graça. De Avelino Lopes em diante a lotação (uma caminhonete D20 a gás) teve toda a sorte de imprevistos. Depois de algumas horas, comecei a acreditar que o Piauí era o lugar mais distante do país... mas chegamos todos vivos a Curimatá.

Neto voltou nos fundos da casinha onde morava com pai e mãe até aquele dia. Se foi buscar alguma coisa ou se por instinto, dar uma última olhada na infância que deixava pra trás, nunca saberei... O menino vestia uma camisa alvíssima, sapatos de-ir-à-missa, e carregava um pequeno embornal ao qual se agarrara. Olhava firme para frente e respondia com monossílabos as minhas tentativas de interagir. A mãe havia nos recebido com todas as honras que podia, o cuscuz com o leite da cabrita do quintal. A folhinha na parede com Nossa Senhora e as prateleiras quase vazias, forradas de tecido, deixavam transparecer o cuidado daquela mulher com seu mundo.

Abraçou e beijou aquele filho como fosse um soldado partindo para a guerra, tive de sair de perto pra não cair em prantos. “A bênça, mãe” murmurou enquanto subia na boleia. Em Redenção do Gurgueia, mais passageiros. Naquele tempo, os caminhões não tinham nenhum dispositivo de controle via satélite; em muitos casos era a única alternativa de transporte público na região. Sacoleja daqui, sacoleja de lá, já era noite quando chegamos pelas ruas de terra de Bom Jesus. Parte do povo desceu na praça. Olhei para Neto, que não piscava os olhos. Pediu ao caminhoneiro se podia dormir ali mesmo. Posso ficar pra cuidar dele, pensei. No dia seguinte, era voltar pra estrada e tentar conseguir outro caminhão até pelo menos Cristino Castro... Acordamos com mosquitos e sol escaldante.

Horas na estrada e viva alma aparecia. “Tão indo pra onde, Dona?” o motorista de um ônibus surgido do nada indagou. Neto, mais que depressa, puxou a barra de meu vestido:

– Diz que a gente vai pro Canto do Buriti, senão ele não leva!

Enfim, nos tornávamos cúmplices. Durou pouco. Moleque, quase me tira do sério – não é que me confundi? “E a senhora disse que tá estudando pra ser professora, hein? Vai precisar de estudar muito, pelo jeito, viu moça?” Ora, buriti, juriti, tudo muito parecido... em nosso umbigo sudes tino. Achei que a cidade tinha esse nome por conta do canto do passarinho! Escutei sua risada acanhada se transformar num riso frouxo, de perder o ar. Quantos anos teria?

Dez, onze no máximo. Estava indo para uma cidade maior, onde viviam uns parentes, pra estudar o ginásio. Será que voltaria um dia? Fui interrompida em meus pensamentos. O motorista gritou sem aparentar qualquer constrangimento: “Alguém tem coragem de descer em Eliseu Martins?”. Uma senhora de mais idade desceu, corajosa, em frente à igrejinha de uma torre só, com tudo o que cabia no bagageiro – malas, colchão, fogão, galinhas. Vinha ajudar a filha um tempo, que tinha dado a luz a gêmeos, explicou em voz alta.

Dizem que hoje em dia esse trajeto leva três horas, no máximo. Deve ser conversa. Levamos o dia todo. De noite, na rodoviária, tínhamos fome, sede e quase dinheiro nenhum. Neto tratou de caçar o cajueiro mais próximo, voltou com os bolsos cheios de caju madurinho. Brinquei: “Faltava só uma branquinha pra acompanhar, né? Mas não pode não, que você ainda é menino...”. Embrabou. De cenho franzido, disse sério que já tinha nascido homem, que nunca fora menino. Ficamos em silêncio umas tantas horas, até o momento da despedida, sofrida e inevitável. Ele seguiria para São João, eu tinha de subir para Floriano, tentar romper o ano em Teresina. Seguimos para o guichê improvisado da lotação, tirou do embornal uma bolsinha costurada pela mãe e entregou tudo o que tinha dentro. Encontrou por ali um amigo de seu tamanho, cochicharam um tanto; dali a pouco voltou com as mãos pra trás.

– Escolhe uma mão!

Era uma caixinha de fibra, com doce de buriti. Neto agarrou minha mão e não queria mais largar.

– Professora, se a senhora não voltar nunca mais pro Piauí um dia vou lá em São Paulo te visitar...

Virou as costas e correu. Embarquei com o coração apertado. Não havia aparelho de mp3, nem walkman tinha; ficava Conterrâneos tocando dentro da minha cabeça... Lembrei do meu avô, de seu brio e da saudade do seu Nordeste. Fiquei imaginando essa viagem ao contrário, com menos condição ainda, quantos anos atrás. Tive vontade de dizer a ele que agora sabia sim o que era o sertão, que ele era maior e mais bonito no Piauí. Que lá tem a seca mas já tem milhares de cisternas, e as pessoas amam muito sua terra e pensam mil vezes antes de embarcar num pau de arara modernizado da Itapemirim. Que tem um povo aguerrido, bem-humorado e muito justo, que construiu cidades e povoados como Mudança, Boa Hora, Estaca Zero; Segredo, Sossego e Alegria; Peixe, Jacaré, Gato e até Tamanduá. Que no sertão tem medo de Num-Se-Pode e do Cabeça-de-Cuia, e tem Neto e sua família, e o doce de buriti.

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