sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

O anúncio da pedra

Sonia M.



Há muito muito tempo atrás, uma tempestade apoderou-se da noite. Chuva,
vento e relâmpagos invadiam os céus, num cenário medonho. O vento varria
brutalmente os campos que circundavam a cidade,arrastando pelos ares as
pedras mais pequenas. Sendo depois largadas nas ruas, nos telhados e nos jardins,
inundados pela chuva. Uma dessas pequenas pedras, guardava ouro no seu interior
e ao ser atingida por um relâmpago, os deuses, num descuido, deram-lhe vida.
O sossego daquela pacata cidade foi devastado. Pela
manhã todos os habitantes uniram esforços para limpar as ruas e repor a ordem.
Limparam telhados, escoaram a água dos jardins, retiraram todas as pedras das ruas.
Todas, menos uma. A pedra viva, permanecia em frente a uma janela e por mais que
todos se esforçassem ninguém a conseguia mover. Não tinha braços nem pernas, mas
ganhara boca. Sempre que a abria era com o intuito de rebaixar e humilhar os que com ela
tropeçavam.

No inicio, talvez pela febre do ouro, ou encantados por aquele pequeno milagre, muitos se
aproximaram dela, mas, mal lhe ouviam a fala pesada, depressa se afastavam. Com o tempo
acabou por cair no esquecimento. Não passava de uma pedra no caminho. Uma pedra rica mas
odiosa. Passou tanto tempo em frente àquela janela, que começou a invejar a vida que via
do outro lado da vidraça. Se falavam, se riam, se choravam, se erravam, se acertavam.
Tudo na vida, que aquela janela lhe mostrava, se tornou numa
obsessão para a pedra. A sua mente de pedra era tão mesquinha, que achou que tinha um único
propósito na vida, um único destino: romper aquela vidraça. Havia noites em que a Lua,
com uma extrema paciência, lhe ouvia os gritos de raiva e inveja, sempre que se via ignorada e
desprezada por todos. Tentava até acalmá-la, dizendo-lhe que se olhasse melhor à sua volta,
talvez encontrasse um outro propósito para aquele acidente de vida, que não fosse o de
destruir propriedade alheia. Mas ela nada ouvia.

Oferecia ouro a quem a atirasse. Todos se negavam, afinal também eles tinham janelas. De que lhes
serviria depois o ouro, a não ser para consertar o que também podia ser quebrado. Então um dia, numa
 única nesga de ilusória sabedoria, a pedra entendeu por fim, que precisava de alguém que vivesse
numa casa sem janelas, sem telhados de vidro e sem espelhos. E resolveu anunciar a sua procura no
jornal da cidade. Mal viu o editor do jornal, ofereceu-lhe um pedaço de ouro, em troca de ser pulicado
o seu anúncio.
Percebendo as suas intenções malignas o editor acedeu ao seu pedido, mas, ao chegar à redação,
resolveu alterar ligeiramente o anúncio.

O anúncio da pedra.

Procura-se uma alma limpa de vida. De uma extrema  pureza..
Uma alma virgem, que permaneça parada, para  que  nenhum 
passo a corrompa, ou lhe viole a pureza. Uma alma que habite 
numa casa sem janelas nem telhados, onde  os  espelhos  não 
façam mais sentido e todos lhe atirem flores.  Uma  alma  que 
carregue o céu entre os dedos.  Procura-se um  morto,  para 
um trabalho simples e rápido. Como recompensa, uma pedra 
de ouro. A quem reunir estas condições, basta que responda
para a secção de anúncios deste jornal, e, ser-lhe-ão facultadas 
mais informações. 
Ass: A Pedra


Consta, que até hoje, ninguém respondeu ao anúncio.

Sónia M

quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

DÚVIDAS




Não queria escrever-te. As palavras permanecem mortas nesta folha de papel, sem haver quem as declame ou as cante aos quatro ventos. Tal como as folhas secas de outros outonos, quando chega o inverno, que as varre até ao rio, onde apodrecem e se afoga o que delas resta. Nem sempre foi assim. Houve um tempo em que as estações não nos atingiam, passavam todas ao lado. Aqui dentro era sempre primavera florida, regada com a seiva que fluía dos nossos corpos. Nunca admitimos a chegada das estações. E porque nunca admitimos, existia apenas uma. Éramos invencíveis. Não te admito que o esqueças e muito menos que baixes os braços. Não tenho mãos que cheguem para afastar os temporais e do lado de cá, já pouco resta. A solidão enfraquece-me tanto quanto a ti. E o mundo pesa mais para quem está só. Por isso hoje não queria escrever-te. Sei que esta folha, mal me caia das mãos, seguirá o curso das estações. Deixando-nos a sós com o silêncio das árvores.

Sónia M

terça-feira, 7 de janeiro de 2014

A viagem

Sonia M



A estação era fria. As pessoas caminhavam lentamente, arrastando pesadas malas. Num repente, comecei a ouvir alaridos de espanto. Uma velha vestida de branco, havia subido à torre do relógio e sem que ninguém soubesse como, sentou-se no ponteiro das horas. Os viajantes, aos poucos, foram abandonando a bagagem, concentrando-se por baixo da torre. Tentavam convencê-la a que descesse e ela recusava, dizendo não ser ainda a hora. Alguém chamara a policia, que tardava. Todos os olhos estavam agora postos no ponteiro das horas, até os meus, e naquela mulher misteriosa. Envergava uma camisa de dormir branca de bordado inglês, que subira até às coxas. Uns longos cabelos, completamente brancos, tocavam-lhe nos joelhos. Com as duas mãos, segurava um saco de ráfia, que parecia cheio e ela olhava para cima, com um olhar doce, como se visse estrelas e não a estrutura metálica da estação.


Não sei quanto tempo passou. O relógio da estação deixou de marcar o tempo e o meu relógio de pulso também. Desconfio que nenhum relógio funcionava. Mais que uma vez, vi entre os que ali estavam, de olhares desorientados, perguntar a uns e outros as horas, sem que ninguém soubesse responder. Incrédula, deduzi que o tempo, obedecia aquela mulher que todos tomavam por suicida. Fiquei curiosa. O que haveria dentro daquele saco de ráfia? Como se se apercebesse da minha curiosidade, a mulher olhou-me. Apontou-me o dedo e pediu-me que chegasse mais perto. Obedeci. Abriu o saco e retirou lá de dentro uma mão cheia de ponteiros, dizendo que era chegada a hora. Com uma agilidade inesperada colocou-se de pé em cima do ponteiro, ficando assim, de costas viradas para o corpo do tempo, pisando o braço das horas. Ao mesmo tempo que uma nuvem de pombas brancas, invadia a estação, esvoaçando por cima da torre do relógio e da velha, que já nem me parecia tão velha. Voltou a olhar-me, esticando a mão cheia de ponteiros e disse-me
- Isto foi teu. Perdeste tantos, como o tanto que pesa a tua mala. Vê!
Lançou-os, como se atirasse comida às pombas, que os recolheram ainda no ar, e, desapareceram com eles no bico. 


Voltou a enfiar a mão dentro do saco, retirando mais um punhado de ponteiros. Desta vez olhou para a mulher ao meu lado e repetiu a operação. Repetiu-a com todos os viajantes que a olhavam em silêncio, como se esperassem a sua vez. A cada vez que o fazia parecia perder idade. Quando o saco ficou vazio, não era mais que uma criança, de uns 7 ou 8 anos. Abriu os braços e saltou. Naquele momento, um anjo caía da torre do relógio. Antes que atingisse o chão, 7 pombas agarraram-na, elevaram-na e desapareceram com ela. Consternados, os viajantes olhavam-se entre si, tentando perceber, se o que haviam presenciado fora real, ou apenas uma alucinação partilhada, que ninguém quis explicar à policia, quando finalmente chegou. O único crime que encontrou, foi tempo perdido.


Ouviu-se a última chamada para o último comboio da noite. O relógio da torre marcava agora 5 minutos para a meia noite. Após 1 ou 2 minutos de despedidas, a estação ficou vazia e o comboio cheio. A vida prosseguiu como se nada. Quando peguei na minha mala, pela primeira vez percebi-lhe o peso. Hesitei, mas acabei por a deixar ali mesmo e entrei no comboio. Afinal, a ternura é leve e não precisa de bagagem. Nenhum tempo se perde ou envelhece com ela.Talvez seja isso, o único que me faz falta, nesta viagem.


Sónia M
, desejo que a vossa viagem seja leve