domingo, 27 de janeiro de 2013

Um passo preto canta numa viagem de ônibus


No ônibus vazio, seguia tranqüila observando os resultados de três dias consecutivos de chuva de verão: muita lama, bueiros transbordando, barrancos caindo e sujeira geral. Em uma parada próxima ao final de linha, entra uma voz forte e melodiosa no coletivo, cantando uma composição de Jorge Versilo em uma interpretação a Emílio Santiago. Os versos tratavam do aprendizado proporcionado pela dor, concluindo que o amor era, simplesmente, o encontro das águas. Bonitas, a música e a voz. Estiquei o pescoço para ver quem era o cantor e não vi ninguém. Ouvi um barulho de tamancos e olhei para o chão. Então vi um rapaz negro com o tronco muito desenvolvido contrastando com as pernas finíssimas, dobradas, próximas às mãos, que faziam o papel dos pés. O moço cantava como o passo preto da minha infância, só que alegre e livre –o que é que eu vou fazer com esse fim de tarde, pra onde quer que eu olhe, lembro de você, não sei se fico aqui ou mudo de cidade (...). Bom repertório, pensei, dobrando os lábios daquele jeito que a gente dobra quando pensa. Enquanto cantava ele tirava a mão calçada com luvas de goleiro do tamanco esquerdo e a estendia a cada pessoa sentada. Tratei logo de pegar minha contribuição para o artista e mereci outro trecho de música. Parecia que ele adivinhava o sentimento da gente: confesso que chorei, não suportei a dor, é doloroso se perder um grande amor. Puxa véio, um pico de Jorge Aragão na artéria femoral. Overdose para qualquer coração. Lágrimas à parte, o moço seguia com seu sorriso largo e eu pensava: que diferença daqueles meninos que entram no ônibus em São Paulo com aquela ladainha insuportável – se-nho-res pas-sa-gei-ros, des-cul-pe in-co-mo-dar a vi-a-gem de vo-cês e toca a contar a saga da família de dez irmãos, pai desempregado e mãe com câncer, todos passando fome, só ele em condições de pedir, e pedir, como todo mundo sabia, era melhor do que roubar. Não satisfeito, o adolescente capricha mais um pouco na cara de dor de barriga e entoa uma música sertaneja qualquer, imitando o sertanejo do momento. E você ali, ouvindo, querendo colar a matraca do moleque com cimento e sentindo uma saudade desesperada das modas de viola de Pena Branca e Xavantinho. Mas aí volto para o ônibus em Salvador e reparo que, enquanto girava o corpo sobre as mãos, dirigindo-se à porta da frente para ir embora, o rapaz cantor reconhece uma amiga e começam a conversar. A voz dela é muito baixa e eu não entendo. Entretanto, ele fala alto, para alegria da minha curiosidade. Ele conta que na semana anterior tinha faltado à faculdade porque havia tido dois coágulos nas pernas e a dor, arretada, não o deixara sair de casa. Naquela semana, todavia, voltaria às aulas e à capoeira (balança o tronco cheio de ginga). Só pode ser angoleiro, concluí segura. Pulando sobre as mãos, ele se despede cantando uma canção do Luís Américo, sucesso nos anos 70: sou filho da véia, oh, eu não pego nada, a velha tem força, oh, na encruzilhada! (Do livro Cada tridente em seu lugar).

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