MIGUEL FALABELA
Ela nos mostrou janelas que se abriam para janelas, como se profetizasse o futuro na sua maneira de contar histórias
Dia desses, o grande arquiteto espanhol Santiago Calatrava fez uma apresentação de seu belo projeto para o Museu do Amanhã, marcando o início da revitalização da zona portuária do Rio de Janeiro. Em dado momento, ele usou um retroprojetor e começou a mostrar, através de croquis, a gênese de seu projeto. Com um movimento ágil, ele traçou as curvas da baía, os morros, a praça Mauá, restabeleceu a relação da cidade com o mar, roubada naquela área pela horrenda e inexplicável perimetral, e nos encheu de um orgulho tão necessário nesses dias que correm. Foi de uma simplicidade e clareza admiráveis e a plateia assistiu encantada às imagens que iam brotando do traço elegante do artista, na tela que dominava a cena. Regina Casé estava sentada ao meu lado e depois me disse, quase um segredo, que tinha se lembrado de tia Gladys e do encantamento que o programa causava em toda a nossa geração.
Tia Gladys e seus bichinhos era o programa infantil da minha primeira infância. Na velha televisão em preto e branco, um móvel que imperava no centro da sala, eu e meus irmãos assistíamos encantados às histórias que a mulher loura e educada ia contando e, delícia suprema, rabiscando nas paredes brancas do estúdio. A ela era permitido rabiscar nas paredes, eu pensava, e me encantava com as histórias do sapo Godô e da formiguinha Gilda que, não por acaso, emprestava o nome ao maternal que eu frequentava. Ainda tenho guardada em algum lugar uma foto com a jardineira azul da escola.
Saí do píer imediatamente tomado pelas lembranças daquelas tardes aprisionadas no tempo, quando a vida era de uma simplicidade mágica. Nossa maior aventura era uma corrida até o trilho do bonde para abandonar ali uma garrafa de cerveja vazia que, mais tarde, devidamente triturada, serviria de base para o cerol que tornaria nossas pipas invencíveis nos combates aéreos. Mas isto era transgressão punida severamente e nem todos tinham coragem de se arriscar em tal empreitada. Isso era tudo. Não havia grandes eventos, a infância era pobre de coisas e plena de sonhos, porque havia a ideia de que uma folha em branco e um pedaço de carvão eram o bastante para libertar a mente das amarras do cotidiano e não foi à toa que a imagem da apresentadora ocorreu à atriz, assim que o arquiteto espanhol começou a nos deslumbrar com seu amoroso olhar para o Rio.
Não sei quanto tempo durou Tia Gladys e seus bichinhos. Acho que era na Excelsior, cujo jingle eu ouço agora, puxado do arquivo: “Do 2 eu não saio, nem eu, nem ninguém. Ninguém sai do 2, nem eu nem meu bem”. Não sei a quantas edições do mesmo eu assisti, mas acredito que uma única experiência já teria sido o bastante, porque a mensagem era clara para as crianças da minha geração. Ela nos mostrou janelas que se abriam para janelas, como se profetizasse o futuro na sua maneira de contar histórias. A nós foi oferecida uma tela branca que é o começo de tudo, ou um quarto escuro em que se acenda a luz para encontrar a personagem. Não importa. Tia Gladys nos oferecia não só a origem, mas a semente da criação e da possibilidade.
Nunca poderemos lhe agradecer o bastante.
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