quarta-feira, 9 de julho de 2008

VIRANDO PÁGINAS

João Almeida


1949, 25 de maio,

terça feira, madrugada.

Lá vem eu!

Olha lá eu!

numa casa grande de corredor,

com quintal plantado,

e o rio Subauma

correndo lá no fundo.



Lá vem eu!

engatinhando pelos degraus,

pegando o corredor

até me pendurar

na grade da porta da frente.



O tempo passa,

e olha lá eu,

já do outro lado da porta

na sombra do tamarineiro.



O tempo passando,

e lá vai eu

subindo a rampa,

brincando na feira

e pulando vou descendo

pra rua de baixo.



Vejam! olha lá eu

mergulhando no pocinho...

---Menino! Tu vai pegar um resfriado!

Me enxugo no sol

e subo o morro dos araçás .



Agora já rapaz, olhem eu

atravessando a pinguela,

encontro incerto, ninguém por perto...



Lá vem eu!

Pegando o trem .

Daqui dá pra ver

minha felicidade

não veio na bagagem.



Olha lá eu!

desembarcando assustado,

seguindo para uma casa vazia,

morada dos outros, minha morada.



Olhem lá eu

expulso da morada dos outros

sem saber pra onde ir

com vontade de pegar o trem de volta.



Olhem eu ficando,

trabalhando, labutando,

encontrando o dia

depois de noites perdidas.



Olha lá eu!

Doente, julgado imprestável,

afastado...



Mas, olha lá eu!

recuperado, reintegrado.



Olha eu poeta!

pérolas e baboseiras

num círculo de sentimentos

arrancados pela sinceridade.

poemas perdidos, esquecidos

na verdade mortos...



Lá vem eu!

chorando, chorando, chorando...

Mas olha lá eu!

sorrindo, sorrindo, sorrindo.



Olhem! sou eu mesmo!

bêbado incompetente,

sem atitude, incoerente,

ficando diante de barcos que partem,

caminhando pelas praias desertas

e deserto.



Vejam! Olha lá eu!

engolindo sem vontade,

sóbrio numa roda alcoolizada.



Lá vem eu!

escorregando esperança abaixo,

julgado culpado sem culpa,

culpado absolvido.



Olha lá eu!

sem saber o que dizer,

falando pra valer palavras perdidas

e calado encontrando palavras

que nunca serão ditas.




Observem eu encontrando o sol!

escondido por trás de pesadelos

dos passos apressados da vida..



Olhem! Olha lá eu!

Se vocês prestarem bem atenção

Vão me ver sufocado

num espaço sem saída,

enquanto o tempo

muda a cor da vida

descolorindo o que deixei de viver.



Olha lá eu!

capengando de dor,

gemidos que não chegam

a nenhum ouvido.



Mas olha lá eu!

andando firme, corajoso,

olhem eu chegando,

olhem eu chegando!

chegando, chegando,

olhem eu aqui...



Salvador , 26/02/96.

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