quarta-feira, 9 de setembro de 2009

Fragmentos de: Os Heróis da Minha Infância

Joilson Kariry Rodrigues

O sertão é povoado de heróis.
Em meus tempos de menino vi a fulô do mandacaru fulorar na seca,
vi o avoar do carcará que é bicho danado, rei dos céus.
Dona Das dores pegou pra mais de duzentos meninos na porta do nascimento,
O carcará é rei dos céus do sertão e pega menino pequeno que se aventura nos monturos.
Xô, bicho malvado, xô. Tem que botar sarro de cachimbo no umbigo que é pra sarar logo,
mas também pra espantar o bicho do céu, ave de rapina.
Cresci assim, respeitando essas coisas de sabedoria infinita, vendo surgir meus heróis do sertão.
O sertão pariu Virgulino e Cego Aderaldo, Patativa e Vitalino, Gonzagão e Normando, Abidoral e Dihelson.
Padim Ciço ta lá, de olho espichado vendo tudo, dando proteção ao sertanejo e inspiração a nossos ídolos.
Assim cresci naquele solo poderoso, vivi minha adolescência e meus heróis.
Uma Patativa cantava lá pros lados do Assaré, a Asa Branca de Exu voava nos céus do Brasil.
Tio Chico Recanto, o profeta, dizia coisas ruins daqueles anos, ele via no sereno da madrugada.
Eu ia às novenas sem interesse nas rezas, trajando minha única camisa azul de volta-ao-mundo,
E aquele espetáculo de vozes à capela, nas noites de novenas, ainda enchem os ouvidos das minhas lembranças.
Ali eu assisti meus primeiros concertos musicais. Depois do show voltava para casa,
Os dias brancos iam e vinham, quentes, bafejando mormaço, dando relâmpagos lá no canto do poente, enganando o sertanejo com promessas inúteis.
Eu era um menino do sertão, bicho manso embrutecendo nas capoeiras, com a alma inundada de cantiga de novena, achando que o sertão era do tamanho do mundo, grande e rachado, e todas as águas estavam represadas num tal açude de Óros, que nas conversas de meninos era maior que todos os oceanos juntos.
A poeira dos caminhos, que só davam pro Crato, redemoinhava no vento da boca da noite, levando o Cão no miolo da carrapeta de vento, forçando a gente a fazer o sinal da cruz.
E foi num giro de vento desses que chegaram os cantadores repentistas, meus primeiros heróis.
Contaram histórias em rimas ligeiras, desafios improvisados, causos de príncipes valentes de reinos mais longe que o Juazeiro.
Depois foram embora num vento que deu de madrugada. E veio o circo São Jorge. O maior circo do mundo, gritava o palhaço se equilibrando em pernas de paus.
Pra nósos meninos do sertão, O PALHAÇO NA PERNA DE PAU ERA UM DO NOSSOS HEROI
Seguíamos o nosso novo herói rua afora, fazendo festa, protegendo a marca de carimbo decalcada no dorso da mão, que nos dava direito à entrada grátis.
E o circo foi embora prometendo voltar, jamais voltou. Então inventávamos outras vadiagens para esquecer a espera inútil.
O sertão era imenso, a maior de todas as terras. E vinha na poeira dos caminhos os homens de gibão. Tangiam boiadas magras, bebiam cachaça e davam aboios tristes que me faziam querer chorar.
Não sei se eram homens, se eram lendas, só sei que amei aqueles seres bárbaros.
A lua mora no sertão e pouco sai de lá para visitar outras terras. Acho mesmo que foi o sertão quem pariu a lua, ou o inverso, porque lá ela se acende como uma coivara em chamas no céu.
E se dá aos bichos da caatinga, aos amantes, alumia os caminhos por onde andou Lampião e seu bando de justiceiros. Alumia as calçadas, as ruas, os alpendres, invade as casas na hora de dormir, pelos buracos das paredes de taipas. A lua é intrusa, mãe do sertão, ou filha, parceira do Caipora. E um dia eu descobri que a lua do sertão é o melhor presente que se dá a uma namorada.
E era sob o olhar majestoso da lua que eu ouvia as histórias dos cangaceiros, homens destemidos, mulheres valentes. E no dia seguinte dávamos vida a esses nossos heróis, em nossas brincadeiras de cangaço e volante.
Se aprendia a soletrar o be a ba no cordel, nossa cartilha encantada. Aí o sertão era pequeno pra tanta história bonita.
O sertão ardia feito brasa de angico em fogueira de São João. Não dava chuva, só relâmpagos inúteis no canto do poente.
A asa branca do Exu voava suplicando amparo ao povo flagelado, Vicelmo irradiava notícias do sul, outras terras bem longe dali, onde morava o Governo que ia nos acudir.

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