Do blogão do Zé (Folha de São Paulo)
A Henry Chinaski
Hoje é mais uma das quartas-feiras que enfrento na maior ressaca e muita preguiça. Nenhuma nuvem no céu. Nenhuma nuvem no meu coração, ressequido e triste como um saco plástico de supermercado à beira de uma estrada empoeirada que não leva a lugar nenhum. A água gelada do chuveiro tenta me ressuscitar. Preciso trabalhar.
Rasguei os poemas bêbados feitos de madrugada, escrevi-os com a caneta tonta da melancolia. Ah! Estou relendo Crônicas de um Amor Louco, de Charles Bukowsky. Depois de 28 anos, pego o livro de volta e viajo com o velho bêbado, lírico e ácido. Certa vez, meu irmão, Paulo César Cascão, depois de sorver um gole de um bom vinho alentejano, usou do seu ferino humor e soltou essa: "Não posso ler Bukowsky porque tenho medo do Detran". Mas eu não estou nem aí. Sigo com minha poesia e meus vícios.
Me enxugo e estou refeito para o trabalho. Só o coração continua apertado, deve ser por causa da Lua cheia que se aproxima — dia 16 é Lua gorda, mermão!
O trânsito parado testa o meu humor. Fecho os vidros e aumento o som do rádio para não xingar ninguém, nenhum panaca que insiste em ser mais esperto que os outros. E o rádio toca Chico:
Mesmo que os cantores sejam falsos como eu
serão bonitas, não importa
são bonitas as canções
mesmo miseráveis os poetas
os seus versos serão bons
mesmo porque as notas eram surdas
quando um deus sonso e ladrão
fez das tripas a primeira lira
que animou todos os sons
e daí nasceram as baladas
e os arroubos de bandidos como eu
cantando assim:
você nasceu para mim
você nasceu para mim
mesmo que você feche os ouvidos
e as janelas do vestido
minha musa vai cair em tentação
mesmo porque estou falando grego
com sua imaginação
mesmo que você fuja de mim
por labirintos e alçapões
saiba que os poetas como os cegos
podem ver na escuridão
e eis que, menos sábios do que antes
os seus lábios ofegantes
hão de se entregar assim:
me leve até o fim
me leve até o fim
mesmo que os romances sejam falsos como o nosso
são bonitas, não importa
são bonitas as canções
mesmo sendo errados os amantes
seus amores serão bons
Choro Bandido, diz o locutor. Esse é o nome da música que Chico Buarque e Edu Lobo fizeram para a peça O Corsário do Rei, de Augusto Boal, em 1965. Por um instante vejo o rosto dela na silhueta de um táxi. Ela, a mira dos meus poemas, nem sabe que estou aqui, nesse engarrafamento, de ressaca, cansado, indo para o trabalho, uma formiga tosca e inútil no meio do Planalto Central. Acelero, o pardal me multa. Mesmo assim, chego atrasado no trabalho. A música de Chico não me sai da cabeça…
Nenhum comentário:
Postar um comentário