terça-feira, 25 de junho de 2013

60 ANOS OU 30 X 2

REGINA DE CASTRO
Ao completar sessenta anos, lembrei do filme “De repente 30” , em que a adolescente, em seu aniversário, ansiosa por chegar logo à idade adulta, formula um desejo e se vê repentinamente com trinta anos, sem saber o que aconteceu nesse intervalo.
Meu sentimento é semelhante ao dela: perplexidade.
Pergunto a mim mesma: onde foram parar todos esses anos?
Ainda sou aquela menina assustada que entrou pela primeira vez na escola, aquela filha desesperada pela perda precoce da mãe; ainda sou aquela professorinha ingênua que enfrentou sua primeira turma, aquela virgem sonhadora que entrou na igreja, vestida de branco, para um casamento que durou tão pouco!Ainda sou aquela mãe aflita com a primeira febre do filho que hoje tem mais de trinta anos.

Acho que é por isso que engordei, para caber tanta gente, é preciso espaço!
Passei batido pela tal crise dos trinta, pois estava ocupada demais lutando pela sobrevivência.
Os quarenta foram festejados com um baile, enquanto eu ansiava pela aposentadoria na carreira do magistério, que aconteceu quatro anos depois.
Os cinquenta me encontraram construindo uma nova vida, numa nova cidade, num novo posto de trabalho.
Agora, aos sessenta, me pergunto onde está a velhinha que eu esperava ser nesta idade e onde se escondeu a jovem que me olhava do espelho todas as manhãs.
Tive o privilégio de viver uma época de profundas e rápidas transformações em todas as áreas: de Elvis Presley e Sinatra a Michael Jackson, de Beatles e Rolling Stones a Madonna, de Chico e Caetano a Cazuza e Ana Carolina; dos anos de chumbo da ditadura militar às passeatas pelas diretas e empeachment do presidente a um novo país misto de decepções e esperanças; da invenção da pílula e liberação sexual ao bebê de proveta e o pesadelo da AIDS. Testemunhei a conquista dos cinco títulos mundiais do futebol brasileiro (e alguns vexames históricos).
Nasci no ano em que a televisão chegou ao Brasil, mas minha família só conseguiu comprar um aparelho usado dez anos depois e, por meio de suas transmissões,vi a chegada do homem à lua, a queda do muro de Berlim e algumas guerras modernas.
Passei por três reformas ortográficas e tive de aprender a nova linguagem do computador e da internet. Aprendi tanto que foi por meio desta que conheci, aos cinquenta e dois anos, meu companheiro, com quem tenho, desde então, compartilhado as aventuras do viver.
Não me sinto diferente do que era há alguns anos, continuo tendo sonhos, projetos, faço minhas caminhadas matinais com meu cachorro Kaká, pratico ioga, me alimento e durmo bem (apesar das constantes visitas noturnas ao banheiro), gosto de cinema, música, leio muito, viajo para os lugares que um dia sonhei conhecer.
Por dois anos não exerci qualquer atividade profissional, mas voltei a orientar trabalhos acadêmicos e a ministrar algumas disciplinas em turmas de pós-graduação, o que me fez rejuvenescer em contato com os alunos, que têm se beneficiado de minha experiência e com quem tenho aprendido muito mais que ensinado.

Só agora comecei a precisar de óculos para perto (para longe eu uso há muitos anos) e não tinjo os cabelos, pois os brancos são tão poucos que nem se percebe (privilégio que herdei de meu pai, que só começou a ficar grisalho após os setenta anos).
Há marcas do tempo, claro, e não somente rugas e os quilos a mais, mas também cicatrizes, testemunhas de algumas aprendizagens: a do apêndice me traz recordações do aniversário de nove anos passado no hospital; a da cesárea marca minha iniciação como mãe e a mais recente, do câncer de mama (felizmente curado), me lembra diariamente que a vida nos traz surpresas nem sempre agradáveis e que não tenho tempo a perder.
A capacidade de fazer várias coisas ao mesmo tempo diminuiu, lembro de coisas que aconteceram há mais de cinquenta anos e esqueço as panelas no fogo.
Aliás, a memória (ou sua falta) merece um capítulo à parte: constantemente procuro determinada palavra ou quero lembrar o nome de alguém e começa a brincadeira de esconde-esconde. Tento fórmulas mnemônicas, recito o alfabeto mentalmente e nada! De repente, quando a conversa já mudou de rumo ou o interlocutor já se foi, eis que surge o nome ou palavra, como que zombando de mim…
Mas, do que é que eu estava falando mesmo?
Ah, sim, dos meus sessenta.
Claro que existem vantagens: pagar meia-entrada (idosos, crianças e estudantes têm essa prerrogativa, talvez porque não são considerados pessoas inteiras), atendimento prioritário em filas exclusivas, sentar sem culpa nos bancos reservados do metrô e a TPM passou a significar “Tranquilidade Pós-Menopausa”.
Certamente o saldo é positivo, com muitas dúvidas e apenas uma certeza: tenho mais passado que futuro e vivo o presente intensamente, em minha nova condição de mulher muito sex…agenária!

Férias

Sónia M
Fechou a mala, vazia!
Esforçou-se em organizar as gavetas por ordem alfabética, durante todo o ano.
Ao abrir a letra "A", não houve abraço perdido, que conseguisse agarrar. 
Na "B", beijos sem toque, sem sabor...
Abriu-as todas, excepto uma, a letra "T". 
Sabia-a demasiado cheia, para a voltar a fechar.
Percebeu que tudo o que necessitava, estaria à sua espera no destino.
Pendurou a tristeza no chaveiro detrás da porta, fechou a mala, vazia e, partiu!
Ao chegar, no reencontro, afogou os pés até aos tornozelos, 
no mar salgado que lhe escorria pelo rosto...
enquanto o sol ,que lhe escapava pela boca, a secava no mesmo instante...
















Sónia M

Era uma vez um "poeta" que mastigava as letras...

Sónia M

Ao André, o menino dos porquês.



Numa manhã fria, como qualquer outra, encontrei o calor à porta de casa.
Estava vestido de branco, com um chapéu às cores, sentado no primeiro degrau da entrada.
Mantinha a mão direita, com os dedos a apontar para uma folha branca, que segurava nos joelhos. Todos os pássaros da cidade sobrevoavam a minha rua em círculos, como se esperassem que alguém, de repente, lhes atirasse migalhas de pão.
A imagem era tão irreal, que cheguei a pensar que ainda dormia e me passeava pelo sonho.
Belisquei-me. Doeu! Pensei em voltar a entrar em casa, mas quando dei um passo para trás, senti frio. Então, decidi aproximar-me. Desci, cautelosa, todos os degraus. À medida que me aproximava, ficava mais quente. Era como um bafo cálido que me envolvia todo o corpo.
Sem pensar, sentei-me ao seu lado. Foi então que vi que pelos seus dedos, a apontarem para aquela folha branca, desciam, brincalhonas e em grande algazarra, as letras que se amontoavam no seu centro.
Riam, saltavam por cima umas das outras, abraçavam-se, beijavam-se e eu, incrédula,
voltei a beliscar-me. Voltou a doer! Esfreguei os olhos, mas continuava a vê-las e a ouvi-las!
Eram tão alegres e coloridas como o chapéu às cores.


Com muito cuidado, como se não quisesse perder nenhuma, recolheu, com as mãos em concha, todas as letras da folha e levou-as à boca. Começou a mastigá-las. As bochechas eram agora gordas e redondas e, sempre que os lábios se entreabriam, saltavam pequenos pedaços, como raspas de lápis de cor, que caíam no chão. Os pássaros apressavam-se a recolhê-los e imediatamente ficavam azuis, tão azuis como o céu. Já não os via, mas sabia que eles estavam lá.
E ele mastigava...e mastigava, arredondava com os dentes cada letra, moldava-as e colava-as com a saliva umas às outras. Depois, com dois dedos em forma de pinça, puxava pelo canto da boca, palavra a palavra, e com elas encheu a folha branca. Aproximei a cabeça do seu ombro e comecei a ler o texto.
O que li era tão bonito, que depressa me chegou ao coração.
Quis perguntar como se chamava e, quando finalmente o fiz, a voz saiu-me rouca, quente, como um sussurro.
- Como te chamas?
E ele respondeu - Poesia.
Naquele dia, acho que encontrei um poeta.


Sónia M


segunda-feira, 17 de junho de 2013

ASSIM É A VIDA!

Milla Pereira

 


De repente você se descobre velho. Olha-se no espelho e se depara com uma imagem desgastada pelo tempo. A que você não conhecia (ou que evitava conhecer). Já não consegue fazer tudo que se permitia antes. Aparece uma ruga aqui, uma dobrinha ali, um fio de cabelo prateado. Ou muitos!

 

As dores, inevitavelmente, surgem. E você procura o médico com muito mais assiduidade. Até quando não está sentindo nada. Prevenção! Sua paciência está por um fio! Mas você se controla mais. Você sabe até onde pode ir ou por onde não pode mais seguir. Dizem que é a sabedoria... Menos mal, para quem anda mal das pernas.

 

Suas piadas já não provocam o mesmo efeito de antes. Ninguém mais acha graça em você! Os jovens, então, o fitam até com uma pontinha de desprezo. Pensam que não vão envelhecer, um dia!

 

Você se produz toda para sair às ruas, tentando melhorar a aparência (afinal, você já foi bonita um dia). Já não ouve assobios de admiração do sexo oposto. E... Mesmo que os ouvisse, você não está no clima para prestar atenção, não em a menor importância p’ra você.

 

Seus filhos, os filhos de seus amigos, já são pais e você percebe quanto tempo se passou! Os amigos de sua juventude, os colegas de Faculdade, também estão velhos. Alguns, enfrentando problemas de saúde. Outros, já não estão mais neste plano. É a realidade! Você começa a se vestir diferente. Aquela calça jeans apertadinha, boca estreita, já não lhe cai bem. E, se você se veste com um pouco mais de ousadia, todos te olham espantados, com ares de reprovação!

 

É... Você envelheceu cara! Está velho e nada poderá fazer para reverter a situação, ainda que recorra às plásticas que, muitas vezes, o tornam ainda mais desfigurado. Você se recusa aceitar os fatos, porque ainda se sente a mesma pessoa de antes. Acalenta sonhos, alimenta ilusões... Mas você está velho!

 

Você ainda faz amor... Mas não é mais como antigamente, ao som do Stevie Wonder... Johnny Mathys... The Platers... Lembra? “Only you…” A paixão já não te arrebata mais! O que ninguém, talvez, perceba, nem você mesmo, é que a gente começa a envelhecer no dia em que nasce! E, se lhe serve de conforto, isto não é um privilégio seu. Acontece a todos!

 

Mas resta a experiência, as lembranças dos anos vividos loucamente, o germe plantado, cuidado com carinho e, finalmente, a colheita! E, se você soube plantar, com dignidade e firmeza de caráter, soube fazer amigos e conservá-los ao longo de sua existência, agora colherá os frutos - doces, como foi a sua vida! E, apesar das contradições, das oposições ao seu estado de espírito... Você é feliz! Muito feliz!

 

 

(Milla Pereira)

quinta-feira, 13 de junho de 2013

CELULITE

 ROGÉRIO MARQUES

Tenho Tesão em singelas estrias e celulites. Não estou dizendo que tenho preferência por mulheres que as possuam ou que estas são mais ou menos bonitas, mas sim, que ao contemplar uma coxa ou quadril onde elas estejam presentes me percebo imerso em uma série de pensamentos, na medida em que, meu corpo é percorrido por sensações muito interessantes.
Imagino todas as reações químicas extraordinárias oriundas dessa verdadeira guerra de hormônios em ebulição constante que acabam por causar as transformações em seus corpos. Sendo um aficionado por montagens fotográficas e efeitos de photoshop, pode parecer contraditório e/ou paradoxal quando afirmo que Não tenho atração por pessoas “photoshopeadas”. Certo tipo de ilusão não me fascina. Desprezo essa busca desenfreada pelo antinatural resultante do ideal pós-moderno de beleza sem marcas.
Uma mulher real é sim, apaixonante. Sentadas no ônibus com seus fones de ouvido, rabo de cavalo e calça jeans colada. Procurando seus livrinhos de vampiros nas livrarias e shoppings da cidade, com seus óculos, espinhas e maquiagens pretensamente personalizadas.
Passeando rebolando suas bundinhas salientes, tomando guaraná natural ou refrigerante. Usando all-star cano longo, rindo alto e sendo sexys de maneira despojada. Indo para o trabalho com visual executivo prendendo seu salto alto nas pedras portuguesas.
Quando elas caminham apressadamente pelo centro da cidade vislumbro na parte de trás da coxa aquelas singelas... Seriam gordurinhas? Bem discretas. Dando leves tremidinhas. Não há como não gostar da mulher real.
E da casa para o trabalho, do trabalho para casa cruzamos com milhares de deusas mais gostosas que qualquer anoréxica milionária das passarelas e do cinema. E nenhuma mortal de fascínio real acredita quando isso lhe é revelado. Triste sina de todos nós, formiguinhas, de não enxergar coisas óbvias.

UMA CRÔNOCA PORTUGUESA Os Pobrezinhos

            ANTONIO LOBO ANTUNES


gráficos - Inger Gregory (1910 - 1995) / imagem retirada da net


Os Pobrezinhos

Na minha família os animais domésticos não eram cães nem gatos nem pássaros; na minha família os animais domésticos eram pobres. Cada uma das minhas tias tinha o seu pobre, pessoal e intransmissível, que vinha a casa dos meus avós uma vez por semana buscar, com um sorriso agradecido, a ração de roupa e comida.
Os pobres, para além de serem obviamente pobres (de preferência descalços, para poderem ser calçados pelos donos; de preferência rotos, para poderem vestir camisas velhas que se salvavam, desse modo, de um destino natural de esfregões; de preferência doentes a fim de receberem uma embalagem de aspirina), deviam possuir outras características imprescindíveis: irem à missa, baptizarem os filhos, não andarem bêbedos, e sobretudo, manterem-se orgulhosamente fiéis a quem pertenciam. Parece que ainda estou a ver um homem de sumptuosos farrapos, parecido com o Tolstoi até na barba, responder, ofendido e soberbo, a uma prima distraída que insistia em oferecer-lhe uma camisola que nenhum de nós queria: - Eu não sou o seu pobre; eu sou o pobre da minha Teresinha.
O plural de pobre não era «pobres». O plural de pobre era «esta gente». No Natal e na Páscoa as tias reuniam-se em bando, armadas de fatias de bolo-rei, saquinhos de amêndoas e outras delícias equivalentes, e deslocavam-se piedosamente ao sítio onde os seus animais domésticos habitavam, isto é, uma bairro de casas de madeira da periferia de Benfica, nas Pedralvas e junto à Estrada Militar, a fim de distribuírem, numa pompa de reis magos, peúgas de lã, cuecas, sandálias que não serviam a ninguém, pagelas de Nossa Senhora de Fátima e outras maravilhas de igual calibre. Os pobres surgiam das suas barracas, alvoraçados e gratos, e as minhas tias preveniam-me logo, enxotando-os com as costas da mão: - Não se chegue muito que esta gente tem piolhos.
Nessas alturas, e só nessas alturas, era permitido oferecer aos pobres, presente sempre perigoso por correr o risco de ser gasto (- Esta gente, coitada, não tem noção do dinheiro) de forma de deletéria e irresponsável. O pobre da minha Carlota, por exemplo, foi proibido de entrar na casa dos meus avós porque, quando ela lhe meteu dez tostões na palma recomendando, maternal, preocupada com a saúde do seu animal doméstico - Agora veja lá, não gaste tudo em vinho o atrevido lhe respondeu, malcriadíssimo:- Não, minha senhora, vou comprar um Alfa-Romeo.
Os filhos dos pobres definiam-se por não irem à escola, serem magrinhos e morrerem muito. Ao perguntar as razões destas características insólitas foi-me dito com um encolher de ombros - O que é que o menino quer, esta gente é assim e eu entendi que ser pobre, mais do que um destino, era uma espécie de vocação, como ter jeito para jogar bridge ou para tocar piano.
Ao amor dos pobres presidiam duas criaturas do oratório da minha avó, uma em barro e outra em fotografia, que eram o padre Cruz e a Sãozinha, as quais dirigiam a caridade sob um crucifixo de mogno. O padre Cruz era um sujeito chupado, de batina, e a Sãozinha uma jovem cheia de medalhas, com um sorriso alcoviteiro de actriz de cinema das pastilhas elásticas, que me informaram ter oferecido exemplarmente a vida a Deus em troca da saúde dos pais. A actriz bateu a bota, o pai ficou óptimo e, a partir da altura em que revelaram este milagre, tremia de pânico que a minha mãe, espirrando, me ordenasse: - Ora ofereça lá a vida que estou farta de me assoar e eu fosse direitinho para o cemitério a fim de ela não ter de beber chás de limão.
Na minha ideia o padre Cruz e a Saõzinha eram casados, tanto mais que num boletim que a minha família assinava, chamado «Almanaque da Sãozinha», se narravam, em comunhão de bens, os milagres de ambos que consistiam geralmente em curas de paralíticos e vigésimos premiados, milagres inacreditavelmente acompanhados de odores dulcíssimos a incenso.
Tanto pobre, tanta Sãozinha e tanto cheiro irritavam-me. E creio que foi por essa época que principiei a olhar, com afecto crescente, uma gravura poeirenta atirada para o sótão que mostrava uma jubilosa multidão de pobres em torno da guilhotina onde cortavam a cabeça aos reis.

quarta-feira, 12 de junho de 2013

Sonhos

  Maria João Correia

Sonhos? Sonhos são pontes imaginárias… hoje, tive vontade de escrever ao mundo…aquele rio, aquele que ali passa…são as lágrimas das margens que secaram, onde outrora construí, a minha ponte fortemente sonhada.
                                                                         
                                                                                                             


As cartas que nunca te entreguei



(excerto) 

Sónia M. 

Batias insistentemente a uma porta que eu nunca abria.
Chegavas sempre nos dias mais quentes, como um pássaro,
deixando na entrada as flores, que colhias nos campos por onde passavas.
Nunca te senti longe, nem perto, fora, ou dentro. Apenas sentia que estavas.
Pertencias ao que comigo nascera, como uma mão, um olho, um braço, ou um dedo, 
talvez metade de tudo o que o peito alberga. Eras assim uma parte minha, 
que encontrei num daqueles acasos em que eu nem acredito.
Foi no dia em que te esperei, com a porta aberta, que não chegaste.
Decifrei assim o meu primeiro enigma. O mistério do tempo das coisas. 
Porque mesmo o que é nosso, deve ser agarrado no tempo certo em que se percebe, 
se descobre, que sempre o foi.
(...)

Sónia M. 

domingo, 9 de junho de 2013

o brilho dos olhos da minha avó...

Cecília Vilas Boas

Foi com o brilho dos olhos da minha avó que comecei a ondular palavras e a soltar 
barcos que criava repletos de sonhos. Os seus cabelos brancos eram as nuvens onde 
gostava de brincar. Perdia-me nas suas histórias. Inventava mundos onde a alegria 
era imensurável. As veredas por onde caminhava a saltitar, dependurada da sua mão, 
estavam tapadas de pólen. Passava as mãos pelas sabrinas e olhava os meus dedos. 
Estavam cobertos por uma imensa luz. Com o brilho conseguia pintar sois e estrelas. 
Olhava a minha avó nos olhos e bebia o seu sorriso tranquilo. Sabia que quando as chuvas 
chegassem estaria protegida no seu colo, pelo seu amor. Sentia a sua sabedoria quando 
me abraçava e dialogava comigo em silêncio, olhos nos olhos. No cabaz dos sonhos 
guardei a bicicleta que me ofereceu quando um dia lhe disse que gostaria de conhecer o mundo. 
Ainda ouço o seu coração. Batia fortemente quando falava da terra, das gentes, dos sentires. 
Depois, apertava-me junto ao seu peito e viajávamos as duas de olhos fechados nos ventos 
que sobrevoavam a nossa casa. Na primavera escutávamos os pássaros que vinham de sul no 
voo sibilino do fim da tarde. Traziam sempre esperança nos olhos e liberdade nas asas. 
Durante o tempo que permaneciam junto ao rio, nas árvores que davam frescura à nossa casa, 
morava com eles. Trocava as palavras pelas asas. Era tanto o azul e o verde que os medos 
ficavam coloridos. E éramos cúmplices neste silêncio que adubava o nosso coração. 
Os pássaros, o vento, eu, a minha avó e as memórias (…)

sábado, 8 de junho de 2013

Linhas sobre nós e os nossos nós.

Débora Andrade
 
Eu sei que não foi mentira. Eu sei que nos amamos como se fossemos morrer no outro dia, mas levantando preces para que fossemos eternos. E seríamos eternos apaixonados, um pelo outro. Seríamos só nós dois. Porque o mundo, parecia figurante na nossa história. Escrevemos páginas lindas, cheias de amor. E agora você simplesmente me solta, e me manda nadar, me diz que talvez, nade comigo de novo, um dia, mas que não sabe. Você vem e me diz pra sorrir, mas os teus sorrisos não me acompanham, os teus braços não estão mais me envolvendo, o teu corpo e o meu, separados. E eu nado, e sorrio, e vivo, olhando pra você, na praia, com um sorriso tímido, como o de um espectador que pouco ou quase nada me conhece. Aquele sorriso de quem se foi, mas espera que eu entenda que da praia, ainda me vê, vez ou outra, mergulhando. E eu nado, e sorrio, e não quero te devolver um sorriso tímido, porque soa falso. Você me conhece tanto. E agora, agir como estranhos é, estranho. E doloroso. Sabe, talvez este seja o último escrito sobre você. Entretanto, eu viveria cem anos escrevendo sobre o seu sorriso, sobre cada parte de você. Sobre nós. Mas tantas linhas não cabem entre sorrisos tímidos, entre estranhos. E você pede que eu cuide da minha saúde, e eu cuido, porque sempre fiz o que você pedia, só porque era mesmo o melhor a se fazer. Você só errou em desistir de nós. Quando você me pede pra viver, quando me fala para não negligenciar a minha saúde, penso no quanto a minha cura está em você. Só que, eu, eu estou no mar, nadando e nadando, e você na praia. E eu não consigo chegar até você, porque você me olha como quem quer que eu fique no mar. E eu não resisto às suas vontades. Penso que sempre vou te amar, e talvez sim, eu tenha outros amores, esse alguém melhor do qual você fala, mas tenho a impressão de que você nunca sairá de mim; e não falo das memórias, falo de você assim, inteiro, o homem para o qual entreguei o meu amor. Eu nunca desistiria de nós. Não acho que eu seja melhor do que você por isso, afinal, sempre achei que você era a melhor parte de mim. Você era o amor, e pra mim, o amor é tudo. Você foi o meu tudo. Por isso me sinto vazia e triste. E me sinto pouco, como se eu não fosse suficiente pra mim. Eu deveria ser, sabe? E estou tentando ser. Sei de um monte de coisas, racionalmente. Quero dizer, a minha razão me aponta diversas teorias, mas na prática, é só você. E não é. Nem somos mais. Estou nadando sozinha. Mas, continua sendo você. Eu te olho na praia, e quase esqueço de nadar, de tanto que me dói o fato de você não estar comigo. Mas então eu nado mais, porque você não teria sequer esse sorriso tímido se visse que me afoguei. E mais uma vez, é mais por você do que por mim, que nado. Às vezes sinto uma câimbra, outras me falta o ar, então, eu me agarro em qualquer coisa, pra não me afogar. Desidratada, machucada, mas sem poder voltar, sem descanso, sem você pra me amparar, pra ser o meu salva vidas, o meu porto seguro. Me desculpe se estou tão fraca agora. Me desculpe por não saber nadar direito, nem sorrir direito, ou por ter deixado, já sem forças, que tudo me abatesse ainda mais. Me desculpe pelas oscilações, é que tento ser forte, caio de novo, mas vou levantar, porque é o que você me pede. E eu não resisto. Porque também é o que preciso, porque não posso caminhar na praia ao teu lado, já que me coloca na água de novo, com toda a sua delicadeza que me insulta. Você é docemente bruto. Como pôde desistir de nós? Nos amamos. Amamos, no passado e também no presente. Mas como podes amar assim? Eu nunca soube te amar sem querer te ter. Agora o faço porque não me couberam escolhas. Isso é tão arrasador, talvez humilhante, mas não importa. Se a minha vergonha for amar, eu a aceito. E se estou assim, triste, não é por amor. É pela ausência dele.